in loco - cobertura dos festivais
Lost, Lost, Lost (idem), de Jonas Mekas (EUA,
1976) por Paulo Santos Lima Câmera,
a arma que recria a memória
Lost, Lost, Lost
é o registro de procura de um cineasta pela razão da imagem, ou pela função de
suas imagens no mundo. Na prática, a biografia de um cineasta contada por suas
imagens: imagens-espelho, imagens-ação. O que sai disso não é um produto acabado,
mas um cinema em construção, obra de um cineasta em exercício político no mundo.
Por isso, é bacana lembrar que Mekas concluiu seu filme
em 1976 (com imagens captadas entre 1949 e 1963), momento em que o mundo já passara
por fatos emblemáticos (nos EUA, especificamente, a erosão institucional, de Nixon
ao Vietnã, incitando aos movimentos libertários, o pacifismo, a crise do significado
das imagens etc). Temos uma autobiografia sem parágrafo final, em andamento, partindo,
assim, da juventude do cineasta à sua maturidade, entre os anos 40 e 70. De ponta
a outra, vemos um processo: Mekas muda seu modo de mostrar e narrar as coisas,
sobre como e o quê captar do mundo. O início estrutura-se como um álbum de família,
sangue do filme na medida que o exílio (Mekas e sua família são de origem lituana)
pede, naturalmente, um reforço das evidências identitárias, o que se faz exemplarmente
através das imagens. Após
mostrar acontecimentos “estáveis”, como festas familiares, reveillon e registros
“documentais” das ruas do Brooklyn (bairro novaiorquino no qual Jonas e sua família
instalaram-se nos Estados Unidos após sair do lodaçal político da Lituânia), o
filme vai guinando para a identidade cinética de Mekas. O estilo torna-se pulsante,
fragmentado, grãos explodindo na tela, todo um repertório de imagens instáveis.
O que parecia uma câmera-máquina fotográfica, torna-se um câmera-corpo, com Mekas
destripando a montagem, usando um Super-8 histérico, uma lente menos reverente
e mais liberta. Embaralha-se, assim, o que é álbum de família,
maquinações encenadas, esboços de filmes ficcionais, haikais, prosódias visuais,
informações documentais. Daí que o melhor momento do longa seja após Mekas e seu
irmão mudarem-se para Manhattan, quando aquilo que ficou definido como underground
(ruim definir essas coisas, sempre, mas é valioso reconhecermos algo que
parecia inscrito numa bula, como o genial haikai “Rabbit Shit”). Predominantemente
preto-e-branco (as brincadeiras com as bolas de chiclete, em filme colorido, são
dignas de todas as notas), esse filme de quase 3 horas de duração, que fala sobre
o desterro e o repatriamento, também registra a iluminação de um cineasta como
interventor do “real”. É na intervenção, portanto, que está o sangue da arte de
Mekas e deste seu Lost, Lost, Lost. Nenhum som direto, com falta de voz
própria em todas as imagens, que são “dubladas” por Mekas (e, no único caso em
que são falantes, é justamente quando Salvador Dalì e horda fazem experimentos
óticos em imagens geométrico-diagramáticas). Sugando para
dentro de sua câmera, Mekas rouba imagens do mundo, de sua história que começa
com seus familiares e depois adota a de amigos, para construir a sua imagem: Imagem
com “i” maiúsculo. As imagens que falam das intimidades dão lugar às intimidades
existenciais de um ativista. Politizam-se ao responder mais veementemente ao mundo,
ao que está fora das quatro paredes do lar. Começa-se com a ilustração de uma
memória para, com o avançar (dos anos, do cinema, da vida do cineasta, da história),
fazer a ação da memória. Câmera que deixa de ser espelho para virar a artilharia,
ser canhão ao mundo, pelo mundo e do mundo – vendo hoje, a obra de Jonas Mekas
é um belo patrimônio de nossa cultura. O cinema é um meio onde é possível que
uma arma, em vez de assassinar, construa a memória. Outubro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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