Desejo
e Perigo (Se, Jie), de Ang Lee (China/Taiwan/EUA,
2007) por Paulo Santos Lima O
sexo, a imagem e sua trascendência
O cinema de
Ang Lee é bastante curioso. Seus filmes, em princípio, parecem aqueles realizados
por um artesão de estúdio, seguindo uma pauta bem formatada ao cinema de gênero.
Mas ao mesmo tempo, entre coisa e outra que aparecem na tela, surge algo de diferente,
que cria uma certa rachadura ou mancha na arquitetura construída. Podemos chamar
de um cinema “denorex”, cujo exemplo literal, ao nível da história contada, está
em Banquete de Casamento (o cara que se declara gay na sua festa de casamento
com uma pequena), e mostra-se de modo mais complexo em Hulk (careta na
péssima dramaturgia mas traduzindo os HQs para o cinema a ponto de reproduzir
com os movimentos de câmera e splitscreens um mirabolante exercício de
leitura em “páginas” em formato 1:85). Desejo e Perigo
é outro “parece mas não é” de Ang Lee, cuja “trapaça” se faz ainda maior
(talvez porque todo o filme pareça “maior”): pomposo, utilizando vários recursos
narrativo-industriais, uma superprodução daquelas que nos fazem lembrar das altas
somas despendidas. Estamos numa espécie de thriller dramático de espionagem que
acontece entre os anos 30 e 40, durante a invasão japonesa na China, país já tumultuado
pelos ingleses. Acompanhamos a gênese militante da protagonista, Wei Tang (Wang
Hui Ling), estudante em Hong Kong que parte para a resistência contra os invasores
nipônicos. Sua primeira missão não será, assim, tão caloura: seduzir o colaboracionista
Yee (Tony Leung), figurão do governo chinês, e atraí-lo para uma tocaia mortal.
Ele, na maior tradição romanesca (e dos thrillers de espionagem da história
do cinema), apaixonar-se-á pela bonitinha – o que não é, afinal, algo muito difícil.
Lee utiliza-se de uma gramática aparentemente tradicional, que narra um entrecho
já bastante sedimentado pela história do cinema, utilizando consonantemente a
trilha incidental e sonora com as ações, montagem colando aveludadamente os planos,
códigos dramatúrgicos bem conhecidos etc. Eis
que surge o “treinamento” da protagonista: na cama, a virgem moça transa mecanicamente
com um partidário para que pareça uma mulher casada e sexualmente madura. É uma
cena (ainda) sob lençóis, mas bastante “extraterrestre” para um repertório até
então mostrado tradicionalmente na tela. Isso é só um indício. Se Ang Lee monta
a sua narrativa na maior das transparências, inclusive deixando tudo bastante
fluido e solene (sem sair da mesma seara geopolítica – alguém se lembra do curioso
O Último Imperador, de Bertolucci?), o momento em que Yee e Wei finalmente
se pegam na cama desvela algo que já estava interdito desde o início, no jogo
de mahjong entre as mulheres que é filmado com uma câmera que mantém sua elegância
num frisson de movimentos um tanto bruscos, decerto acelerados: uma brutalidade
inominável. Brutalidade que estaria num outro tipo de cinema, menos iconográfico. E
daí vem a rasteira genial de Ang Lee, na medida em que a cena de sexo, carnal,
no melhor exemplo de cinema físico, é ambígua — Yee maltrata a sua amante ou apenas
a celebra de modo um tanto fora dos padrões? A doce Wei geme de dor, desespero
ou prazer? Saberemos (em termos) lá pela frente. O que temos, de palpável, bem...
são os corpos: as curvas, planícies e vales carnais, rala relva de pêlos axilares
e pubianos de Wei, tudo muito bem inscrito na tela, com o corpo do austero Yee
completando a geografia corporal nos atos sexuais. Tudo isso, é bom lembrar, sob
forte desconforto de uma trilha incidental que acompanha os bofetes e trancaços
de Yee contra Wei, até chegarem ao momento supremo das manobras. Talvez seja sexo
explícito, mas a câmera não chega a centímetros da penetração, e uma sombra ajuda
a deixar a coisa menos evidente. A
partir dessa seqüência, o filme literalmente penetra fundo, como diz Wei sobre
como Yee a invade como uma serpente; assim como, depois, quando ele chega ao êxtase,
ela o tem nas mãos. Mantendo a mesma gramática, o filme mudará um pouco a sua
caligrafia, com mais pulsação, tensão e imagens cáusticas (menos a de sexo e mais
um plano no qual a câmera vai literalmente para o abismo). É no terço final que
fica claro que Desejo e Perigo versa sobre o amor e o sexo: o amor roubado
de Wei pela militância política (ela gostava de um jovem colega, Kuang) e o sexo
que será o caminho possível para vida e morte (é o sexo com Yee o que Wei tem
de mais certo, o que justifica sua paixão por ele). O amor e o sexo que também
estão na própria construção do filme, que em princípio e constrói romanticamente
suas cenas para, no correr, descortiná-las de seu lamê e mostrar seu corpo, o
que há por trás dos adereços. Não é por menos que o último
plano deste longa mostra um leito vazio, imagem subjetiva de alguém que pena por
uma ausência; ausência que deixa deserta aquela cama, lugar de revelações e explosões
de sentidos, ambigüidades e certezas. Já que o sexo faz transcender, Ang Lee,
cineasta afinado ao cinema de gênero, tenta a imagem transcendental para fazer
seu filme idem. Desejo e Perigo é belíssimo filme de alcova. Outubro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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