pariscópio David
Lynch no Bar do Bob por André Brasil
Depois
de visitar a mega-exposição The air is on fire, de David Lynch, na Fondation
Cartier pour l’art contemporaine, ficamos logo tentados a recorrer à velha brincadeira:
“como artista plástico, você é um ótimo cineasta.” Brincadeira que mais engana
do que esclarece. A ampla curadoria de obras do diretor nos revela um artista
inquieto, múltiplo e, ao mesmo tempo, coerente em sua trajetória. No ano passado,
Lynch recebeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza, pelo conjunto de sua obra,
e agora volta ao centro das atenções da imprensa européia com o lançamento de
Inland Empire. Quanto à exposição, trata-se de uma seleção, exaustiva e
irregular, de pinturas, desenhos, fotos, filmes experimentais, animações e criações
sonoras, obras que ele acumula desde os anos 60. O
artista plástico David Lynch carrega o “fardo” de ser um grande cineasta. Não
poderia ser diferente. Vemos seus quadros sempre à luz dos filmes. Mas podemos
ensaiar um outro movimento crítico. Para além das hierarquias ou juízos de valor,
nos atentar às passagens: da pintura ao quadrinho, do rabisco ao roteiro,
do desenho à instalação, da fotografia à pintura. Passagens entre imagens, para
lembrar a fórmula de Raymond Bellour. O próprio artista concebeu a cenografia
que abriga suas obras: corredores, cortinas, portas, labirintos. Grandes, pequenos,
largos, estreitos. Lynch adora as passagens, por onde perambulam seus personagens.
E por onde perambulamos, nós que visitamos sua exposição. Por meio das passagens
(seja em sua exposição, seja em seu cinema), o artista nos faz percorrer espaços
de densidades e escalas diferentes. Espaço heterotópico, diria Foucault.
“Há diferentes mundos em um mesmo lugar. Isso é maravilhoso. Basta pegar o ônibus
e passamos de um mundo a outro”, nos diz David Lynch.
O mesmo se pode dizer
do tempo. Passar de um espaço a outro produz uma espécie de refração de
nossa experiência temporal: o tempo aumenta ou diminui sua velocidade, o movimento
dos corpos torna-se mais fluido, mais viscoso, ou mais denso. Nesse sentido, um
belo ensaio fotográfico, escondido no fundo da exposição, é tão simples quanto
revelador: abandonados sob a ação do tempo, bonecos de neve se desfazem. As fotos
destoam do restante dos trabalhos. Foram tiradas em Idaho, cidade onde Lynch passou
a infância. As imagens parecem suspensas em uma encruzilhada de temporalidades
distintas: o tempo da infância, o tempo da decomposição dos bonecos e o tempo
da imagem. Ressonâncias e refrações Diferentes
mundos em um mesmo lugar: cada qual com sua linguagem, sua lógica interna, suas
materialidades, suas densidades, suas velocidades. Diferentes, mas em ressonância.
De um mundo a outro, não há ruptura, mas desvio, refração. Questão de memória.
Lembrar aqui é, sempre, refratar. Mas, a dificuldade destas
passagens, destas refrações, está em sua extrema precariedade: entre o que ainda
será e o que já deixou de ser. The Man Was Shot 0,9502 Seconds Ago é o
título de uma das pinturas de Lynch. Como apreender o instante pouco antes do
tiro? Ou como pergunta Lynch, em uma de suas pinturas: “Can bob remember before
it is too late?"
A
série mais despretensiosa da exposição, talvez seja a mais desconcertante: 500
desenhos traçados sobre todo tipo de papel (post-its, guardanapos, caixas
de fósforos, blocos de hotel, envelopes, cadernos de rascunho, capas de roteiro).
Esboços, diagramas, fragmentos de diálogo, frases soltas. Uma proliferação de
micro-cosmos e, entre eles, refrações mínimas. Vistos isoladamente ou em seu conjunto,
estes esboços são como estilhaços do processo de criação de David Lynch. Explicitam
as passagens, os interstícios, através dos quais o artista nos faz atravessar
de um a outro universo. Exploramos seus desenhos atentos aos traços, às pistas,
aos indícios que nos permitiriam refazer liames e conexões. Em um dos desenhos,
por exemplo, Lynch escreve: “Fire walk with me.” Se Frank Booth (personagem de
Denis Hopper, em Blue Velvet) tivesse uma tatuagem, seria essa a frase,
ele imagina.
Nos hotéis, nos restaurantes, nos intervalos
entre as filmagens, o cineasta desenha. Compulsivamente. Esboça, rabisca: a distração
do traço, o pensamento em ato. A variação da velocidade da caneta de acordo com
a porosidade do suporte. Enquanto pensa, o pensamento se rascunha, inscrevendo
ali suas velocidades. Durante as filmagens de seu primeiro longa, Eraserhead,
ele brincava de fazer desenhos em caixas de fósforo. Dípticos, como gosta de chamá-los.
Entre um e outro quadrinho, refrações. Ou ressonâncias, diria Deleuze: “É próprio
da sensação passar por diferentes níveis sob a ação de forças. Mas, acontece também
de duas sensações se confrontarem, cada uma tendo um nível ou uma zona, e fazendo
comunicar seus respectivos níveis.” (1) O mundo, no instante em que
se refrata Inland
Empire, último filme de Lynch, parece levar ao limite essa idéia de um espaço
heterogêneo, onde convivem múltiplas temporalidades que se refratam. Esse procedimento
que, em Lost Highway e Mulholland Drive, é ainda econômico, se intensifica,
se excede em Inland. Talvez, por isso, o diretor adore a beleza ambígua
de Laura Dern. É que o seu é um rosto de limite. Consegue, como poucos, se manter
entre: o choro e o riso nervoso; o espanto e a beatitude, em uma mesma
expressão. Em Inland Empire (e em outros filmes de Lynch) esse rosto aparece
distorcido, como se refletido em um espelho côncavo. A distorção cria uma impressão
de transitoriedade, como se o rosto tivesse sido apreendido (ou aprisionado) no
momento de passagem, no momento em que passa de um a outro estado. Assim
como em vários de seus filmes, The air is on fire nos remete, imediatamente,
à experiência do sonho. Ou, como queiram, do pesadelo. Isso se intensifica com
a música ambiente, que, como uma trilha sonora sombria, nos acompanha por todo
o percurso da exposição. Mas, desconfiemos um pouco dessa hipótese: estamos mesmo
em um sonho? Por meio de uma rede frouxa e descontinua de conexões, através das
sucessivas mudanças temporais, Lynch quer nos manter neste mundo, em seu limiar.
Não é do sonho que se trata: esse mundo estranho, absurdo, pode bem ser o nosso. O
título da edição da Cahiers du Cinema de fevereiro, dedicada a David Lynch,
é uma espécie de slogan: “Artista total”. Ora, a totalidade é o que não tem lugar
aqui, onde o dentro do pensamento e da memória se confunde com o fora da rua e
dos cenários. O que a exposição na Fondation Cartier nos sugere é justamente
o contrário: a inquietude de Lynch e, assim, sua força criativa, nascem de um
mundo difuso, que nos exige passar, constantemente, de um estado a outro, de uma
a outra escala. Não são sonhos ou pesadelos o que experienciamos ali, mas o mundo
mesmo, no instante em que se refrata. O instante – distendido, suspenso – em que
ainda não sabemos se a atriz ri ou chora. Instante antes do tiro. Diante
de tantos esboços, somos capazes de arriscar de onde surgem as histórias e os
personagens de David Lynch. Antes e além do cinema, seus esboços valem por si:
eles nos oferecem uma arte em processo, dispersiva e irresponsável (no melhor
sentido da palavra). Uma arte que, longe dos compromissos do cineasta, nasce de
um pensamento espontâneo, em ato, impregnado da experiência ordinária. Vez ou
outra, esses traços abusados transbordam, desavisadamente, para os roteiros dos
filmes. Ali, no bar do Bob, enquanto
aguarda seu refeição, ele rascunha. O pensamento desliza com a caneta sobre a
porosidade do guardanapo. (1)
Deleuze, Francis Bacon: logique de la sensation. Tradução
livre. editoria@revistacinetica.com.br
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