in loco - cobertura dos festivais
Mãe e Filha, de Petrus Cariry (Brasil, 2011)
por Thiago Brito

Contemporâneo

De volta a Cococi, a filha deve trazer o filho natimorto aos olhos da mãe. A filha deseja enterrar logo a criança; a mãe deseja mantê-la, mesmo morta, à espera do falecido marido, afastado e possível fantasma. Destarte, a questão gira em torno do embate entre gerações, um embate entre tradições: de um lado, a filha, que busca uma forma de romper o peso do misticismo da mãe; do outro, a mãe, que busca unguentar o menino falecido à guisa de um contato espiritual com um além. A cidade do interior é reclusa e isolada. Por ser fantasma, guarda o peso de um passado revestido de tradição. É no minuto que a filha embrenha-se no mato que já vemos as figuras dos cangaceiros à espreita: a terra resguarda forças, um passado imantado. E, assim, o filme nos carrega inundado pelo misticismo daquele espaço: uma cidade abandonada (já filmada por Petrus Cariry em Dos Restos e das Solidões), onde cada pequena ruína guardaria em si a força tresloucada de um espírito em convulsão. Não à toa, é o ruído arrufado que persegue todo o filme, onde os sons da noite se apresentam mesmo em cenas de dia - a noite, a floresta, o desconhecido; enfim, é um lamaçal de simbolismos e sensações sinistras. As questões apontam para um desfecho enérgico e, no mínimo, aberto a interpretações. A filha corre em direção aos cangaceiros, que embargam sua passagem. A corrida é exasperante. Há, portanto, briga, uma vontade de rompimento. Existe luta. Mas, o que exatamente está nossa protagonista buscando? Entre qualquer coisa, aparentemente, o ato, e não o fim. Isto é, importa mais a exasperação do que a finalidade para onde se deseja ir.

Estes pequenos pontos não nos são estranhos. Aliás, podemos até mesmo aferir que eles constituem elementos possíveis de inúmeros filmes contemporâneos, que continuamente andam investindo em idéias abstratas de relação com o mundo, de maneira que procuram fugir, no mínimo, de uma perspectiva deveras concreta, realista, ou pura e simplesmente imediata, de um estar no mundo. Não apenas deve existir, mas tem que existir mais coisas no mundo do que sonha nossa vã filosofia. Este tipo de posicionamento de um cineasta, que se espraia num leque que vai de Terrence Malick até nosso Petrus Cariry, pode nos indicar muito claramente um sintoma que se busca resolver de forma bastante interessante através da idéia de um espaço.

Histórias que Só Existem Quando Lembradas, Girimunho e Mãe e Filha (além de outros), todos se situam na idéia de um interior. Todos atuam na compreensão bastante clara de que, se alguma coisa pode existir de diferente nesse nosso mundo já todo tão igual, só pode realmente vir de uma situação limítrofe, em que esquecimento, lembrança, tradição e misticismo se encontram e auto-fecundam-se em um painel indistinto de novas perspectivas de mundo. Em tudo, podemos dizer com alguma certeza: existe a necessidade de buscar algo de diferente. E, para isso, os filmes estão nos levando cada vez mais para um interior esquecido, arruinado, assolado, passado; um interior cada vez mais interior. De lá, buscam extrair qualquer coisa de exepcional que, necessariamente, justifique nossa viagem. Ou pelo menos, é isso o que fazem os três longas-metragens aqui citados. Em todos, somos obrigados a achar alguma coisa de sublime, de diferente, alguma graça que esteja escondida abaixo de mil meandros.

RaniaPetrus Cariry buscou resolver-se apostando em um quadro mais esquemático de uma divisão entre dois mundos: aquele de Cococi, e aquele do universo (claramente urbano: Fortaleza) da filha. Ao contrário de Girimunho, onde o espaço mais aparece como um facilitador, um meio fértil de onde personagens tão únicas (ou, pelo menos, é assim que o filme deseja que olhemos para elas) possam vir a ser; ou mesmo Histórias..., onde o espaço é, a um só tempo, um elemento que possibilita a existência daquelas personagens e um horizonte possível para uma nova existência, Mãe e Filha enchafurda-se no misticismo completo: Cococi é quase autárquico, um organismo que se auto-sustenta. Esta prerrogativa é o corte que ocasiona a divisão: a força de Cococi não pode viver ao lado de uma concepção de mundo como o da Filha; eles vivem um ao lado do outro, de forma combativa e eliminatória. Esse combate obriga o filme a fazer uma escolha, e a maneira quase reverencial com que filma cada ruína de Cococi não dificulta saber qual delas vence.

Mas, qual é a imagem que nos sobra? Esta é uma questão confusa, bastante complicada. A todo momento, Cococi nos vem inviesado, indireto, já que aquilo que podemos considerar espiritual nunca pode ser visto em cheio, face a face. Assim como em muitos filmes contemporâneo – e aí podemos ir de Mal dos Trópicos até A Fuga da Mulher Gorila, ou mesmo Árvore da Vida e Girimunho – uma imagem não pode faltar: a tela preta, o som sugestivo (noite, aves, vento). Talvez essa seja a melhor resposta para o que se busca. Se o interesse é uma reverência, um respeito, um voltar-se completamente para aquilo que nos é desconhecido, invisível; se a função do cinema, atualmente, é nos entregar às sensações daquilo que não conhecemos, ou vivenciamos inteiramente; se é isso o que se deseja, calmamente vamos caminhando a um tipo de radicalidade que é plenamente expressada na frase de Juliano Gomes, sobre Tio Boonmee: “Tio Boonmee é um filme sobre o cinema”.

Afinal, o que é a tela escura e os sons sugestivos se não um voltar-se literalmente a si mesmo? Quando dentro do cinema, sentimos apenas o estar ali, não há imagem, não há horizonte: há a tela que nos retorna nada, há os sons que nos sugerem uma aventura ao desconhecido (a velha história, mais velha do que a palavra ser: o bosque de Chapeuzinho Vermelho, a senda por onde, caminhando, nos deparamos com o obscuro, aquilo que pode nos engolir ou revelar). A tela escura é uma unidade, e não um fragmento. Talvez a pior coisa que Apichatpong legou ao cinema: um novo misticismo. A salvação do cinema, ao que tudo indica, estava alí, na nossa cara, no início do cinema, no primeiro cinema (e mesmo no videoclipe, seu filho bastardo) - estava, caladinho, no próprio cinema, no ato de se sentar em uma cadeira, numa sala escura, e curtir seus elementos, se deparar com uma imagem e um som que se justificam por si mesmos, que nos intrigam e nos fazem continuar a ficar sentados.

RaniaAgora, podemos ficar aqui deduzindo ao que possivelmente isso pode nos levar. Talvez a nada. No entanto, creio que pelo menos uma coisa pode ser dita: que, atualmente, e em crescimento, um dos maiores clichês do cinema contemporâneo - e está aqui, em Mãe e Filha, e está em Girimunho, e está em Mal dos Tropicos - é exatamente este pequeno momento: não ter imagem.

Outubro de 2011

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