O Equilibrista (Man on Wire),
de James Marsh (Inglaterra/EUA, 2008)
por Rodrigo de Oliveira

Filme de aventura

Diante de uma façanha inigualável repleta de imagens de arquivo que detalham sua execução e repercussão, e de personagens apaixonantes e completamente devotados ao espírito de suas aventuras, o objeto de O Equilibrista não poderia ser outro que não a própria idéia do maravilhamento. As bases para o tipo de filme que James Marsh orquestrará são todas dadas pela visão que os protagonistas têm de sua história. O plano que levou o artista circense Phillipe Petit a atravessar as torres gêmeas do World Trade Center suspenso numa corda-bamba, em agosto de 1974, é amplamente referido por todos os seus entusiastas como “o golpe”. Daí surge o pequeno filme-de-assalto que convive dentro da narrativa documental clássica de O Equilibrista. São imagens dramatizadas em preto-e-branco que carregam em efeitos de abertura e fechamento de íris, movimentos acelerados e uma atmosfera nublada e francamente onírica, como se houvesse uma natureza inegavelmente fantasiosa naquilo que, como o filme provará, geraria um fruto do mais puro realismo.

Marsh, no entanto, nos oferece constantemente a dúvida em relação a um acontecimento cujo desfecho conhecemos e que tem – maior dos impedimentos do suspense – todos os personagens ali, vivos e inteiros, trinta anos depois, recontando a façanha. A estrutura do filme, indo e vindo entre os planos de Petit e sua trajetória artística até o grande ato, joga com a descrença e a revelação como se estivéssemos prestes a testemunhar o inédito. É uma operação mais complexa do que simplesmente “nos colocar no lugar” dos aventureiros ou dos espectadores imediatos da apresentação. O Equilibrista vai acumulando uma série de imagens que parecem a súmula do registro cinematográfico desde seus primórdios, do pastelão ao filme surrealista, passando pelo registro colorido e granulado das cenas caseiras que Petit rodou ao longo de sua vida; dos grandes planos abertos e a montagem em escalada de duas cordas-bambas anteriores (nouvelle-vagueana na travessia das cúpulas da Catedral de Notre-Dame, em Paris, hollywoodiana no passeio entre as torres da Harbor Bridge, em Sidney), do registro em vídeo magnético da televisão da época, até chegar à textura digital cristalina dos depoimentos tomados com Petit; seu braço-direito na operação, Jean-Louis Blondeau; sua namorada na época, Annie Allix; e mais um grupo de franceses, um australiano e alguns americanos que compunham a improvável confraria. O que atravessa todos estas matrizes diferentes é uma mesma unidade dramática: Petit ao longo dos anos, com seu entusiasmo, sua graça, e alguns cabos de aço.

Não deixa de ser natural que o equilibrista tenha filmado boa parte de sua história, sobretudo a preparação para a travessia das torres gêmeas (desde os treinos, num campo verde tão parnasiano, às maquetes e reuniões de planejamento da operação). Trabalhando com o efêmero, o incontornavelmente efêmero, o registro em filme é a garantia da sobrevivência, e para quem não tenha acompanhado a façanha na época, da própria existência dela, prova inequívoca do fato. Mas se é justamente em torno da natureza factual da travessia que O Equilibrista centra suas forças, o faz apenas para negá-la enquanto representante mais fiel do que a aventura de Petit e seus amigos possa significar. Uma vez construído o clima de thriller que leva à execução do “golpe”, não restam mais do que emoções incontidas: os depoimentos perdem a objetividade, os depoentes perdem a articulação em nome ou do choro puro e simples ou da repetição de interjeições e lugares-comuns sobre a experiência espectatorial da apresentação de Petit. As imagens narram-se a si mesmas, prescindindo dos efeitos de montagem e das reencenações.

E ainda assim, pesa sobre o filme uma sensação de incompletude, e ela é irremediável. Porque, entre outras coisas, o melhor filme que O Equilibrista pode ser é este que tenta capturar uma figura por diversas vias para que então reconheça a fragilidade de seus próprios meios. Petit enquanto unidade dramática, a travessia enquanto acontecimento histórico: o impossível aqui é compreender, e reproduzir em filme, a qualidade maior do artista como o próprio objeto estético de sua arte, replicar no fotograma a fruição que pertence a um espaço e um tempo específicos e irreprodutíveis. Nada pode ser mais frustrante, em se tratando do meio da reprodutibilidade por excelência.

Um policial, com o ímpeto ao mesmo tempo poético e pragmático, chama Petit de “dançarino”, e então sentencia que estava paralisado em sua função de impedir aquele crime de invasão e perturbação da ordem pública porque “sabia que estava testemunhando algo único, que só se vê uma vez na vida”. Annie Allix conta que, uma vez percebendo que Petit finalmente tinha conseguido subir na corda e que já iniciava a primeira das oito idas e vindas no cabo de aço, começa a gritar na rua para que todos olhem para cima – é quando Petit percebe que as torres já viraram seu palco e que já conta com espectadores e, portanto, gentilmente saúda a platéia, ajoelhando na corda. Ponto pacífico em todos os testemunhos: “aquilo” era arte, e era lindo – não enquanto travessura, enquanto objeto da adrenalina e da permanente ameaça de morte, mas enquanto manifestação do belo artístico, da conjunção de elementos não-naturais, construídos precisamente para um determinado fim, para a produção de um efeito exterior e também para existir em si como coisa estética.

É sobre essa dimensão da aventura (e da própria personalidade) de Phillipe Petit que O Equilibrista versa. Daí talvez a supressão por completo do destino que aquelas mesmas torres teriam décadas depois, com o 11 de setembro. O filme não faz uma menção sequer ao atentado, e é de se imaginar o quão encantador e emocionante Petit poderia ser ao falar sobre ele (sua relação com o World Trade Center é de pertencimento, como se fossem, um e outro, extensões diversas de uma mesma matéria). As imagens do choque dos aviões, da fumaça e da queda das torres estarão para sempre coladas àquele panorama, presentes mesmo quando o que estamos assistindo são registros de sua construção e inauguração. Da mesma maneira a figura minúscula de Petit no meio da imensidão dos arranha-céus faz parte da composição daquele “quadro”, está lá apesar da ausência dos arranha-céus, da ausência do espetáculo enquanto continuidade (“once in a lifetime event”), da nossa ausência enquanto platéia, da ausência de Petit enquanto artista.

É audacioso, e mesmo um pouco petulante, acreditar que o fruto da obsessão de um francesinho claramente fora-de-órbita possa ser comparada ao acontecimento histórico que define o século XXI. Mas eles não dividem apenas o mesmo palco. Foram, em suas devidas proporções, dois momentos largamente filmados e fotografados, sobre os quais não sobrou nem mesmo a dimensão processual, do “acontecer”, uma vez que já estão instalados na mais pura iconografia. Mas contra todas as provas factuais, o que define verdadeiramente estas duas pontas de uma mesma história é a imaterialidade das sensações que provocam. São “coisa de cinema” e, no entanto, a potência máxima de sua angústia, medo e maravilhamento só pode existir fora dele. O que O Equilibrista faz, de maneira igualmente gentil, é nos oferecer um convite para esse lugar que ele sabe ser incapaz de reproduzir.

Outubro de 2008

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