Maria Antonieta (Marie Antoinette),
de Sofia Coppola (EUA, 2006)
por Cléber Eduardo

Construção de um olhar para a História

O que fazer, em forma artística, diante da História? O que  mostrar? Como mostrar? Procurar um suposto olhar de outro momento ou assumir o olhar contemporâneo? Quando foi anunciada a realização de Maria Antonieta, por Sofia Coppola, se soube de saída que podíamos aguardar uma aproximação pouco óbvia com o assunto, a partir de seus dois filmes anteriores (Virgens Suicidas e Encontros e Desencontros). Não se esperava, de forma nenhuma, um experimentalismo à moda de Eric Rohmer (A Inglesa e O Duque) e Hans Jurgen Syberberg (Hitler – Ein Film Aus Deutschland), porque nem esse é o espírito de Sofia. O seu é o de uma melancolia juvenil assumida como construção e artifícios, mas nem por isso menos verdadeiro em seus efeitos poéticos. Estamos agora no terreno da História, dotado de registros sobre a personagem (última rainha da França), sobre seu meio (a corte francesa, o Palácio de Versailles) e seu momento histórico (o epílogo da monarquia no século 18).

Se não se poderia esperar de Sofia uma reconstituição cheirando a naftalina, disposta a exibir, pela descrição da câmera e pelo conteúdo dos diálogos, um empenho de pesquisa, por outro lado ficava a pergunta: o que esperar? A resposta começa já nos letreiros cor de rosa, nos acordes de guitarra e na batida da percussão, com uma voz roqueira preenchendo a imagem de Maria Antonieta, deitada na cama, os pés sendo cuidados por uma pedicure da corte. Seria apenas uma sequência de embalagem pop para um assunto histórico se nessa imagem inicial não se evidenciasse uma operação metalinguística da atriz, que, disposta a nos propor adesão com uma piscada de olho, encara a câmera com sorriso zombeteiro, como uma celebridade posando em ensaio fotográfico, não sem consciência do inusitado de sua condição de vida.

Maria Antonieta, ao nos cumprimentar com seu sorriso e olhar, propõe uma aproximação. Ela será os nossos olhos no trânsito pela nobreza em fim de linha, tanto a estranhando quanto se adaptando a ela, como se visse sua vida de fora dela e de si, sem deixar de estar vivendo-a – ora sendo formatada pelas regras de conduta, ora alterando e driblando essas regras. Maria Antonieta é a um só tempo vítima da circunstância e agente em um contexto, sofrendo o preço de estar onde está e tirando proveito de estar lá.

Sofia deixa claro desde o começo que não quer a encenação da História, mas um olhar para sua representação com posicionamento contemporâneo. Isso não está apenas na trilha sonora, mas, também, em um enfoque sobre Maria Antonieta, uma estrangeira na corte francesa que leva uma vida de celebridade confinada, cuja vida é matéria de fofocas dentro e fora do palácio. A personagem vive um misto de dentro e fora em relação a seu meio (e a seu tempo histórico, em última instância). Há sentimento de deslocamento, mas também de necessidade de inserção, de submissão ao mundo codificado. Essa figura, com o corpo no século 18 e os olhos de 2006, evidencia a posição de Sofia, claramente esforçada em adaptar um espírito do tempo e da nobreza ao espírito das celebridades contemporâneas. Maria Antonieta é a rainha e a alusão à rainha. É menos a representação do passado que a do presente olhando o passado.

A diretora nos aproxima da protagonista nos dando a ver seu estranhamento (inclusive usando câmera subjetiva, o que nos coloca nos olhos de Maria Antonieta). Parece clara a ironia de suas reações aos excessos de etiqueta em Versailles, agindo quase como uma alienígena descobrindo as particularidades de um novo mundo onde terá poder (lembrando a Pocahontas de Novo Mundo, de Terence Malick – outro diretor do qual não se podia esperar uma relação ilustrativa e didática com a História). A ousadia de Sofia, porém, parece recatada. Ela faz questão de rasgar o modelito das reconstituições, mas o faz como um comentário, sem obter integração entre o procedimento e as situações em quadro. Há somente esforço de se conotar, nenhum de criar experiências.

Se essa recusa a uma aproximação mais direta com os acontecimentos pode tornar mais legítima e justificável as rachaduras na evolução da personagem, bastante afetada pelas elipses e pela pressa em correr com algumas sequências, o artifício assumido também se ressente de um atrevimento maior na relação século 18/2006-7. Sofia parece envergonhada de chutar para longe o bom senso. Sua rebeldia é a do shopping center da História. Se sua personagem está dentro e fora da corte, no passado e no presente, olhando o passado com assumido olhar do presente, o filme nos coloca em fina sintonia com ela, celebra suas atitudes como se fossem reações compreensíveis de uma adolescente submetida a uma biografia programada. Maria Antonieta torna-se patricinha de Beverly Hills porque não suporta o peso e o tédio de suas tarefas. Quer diversão, luxos, caprichos. É a maneira de compensar por ter um espaço tão estreito para escolhas.

Diante da constante adesão de Sofia a Antonieta, não deixa de ser estranha a sequência, quase ao final, na qual a rainha sai à sacada e agacha-se em sinal de submissão, com o povo revoltoso em frente ao palácio, abaixo da sacada, com ímpetos de se vingar da fome para a qual a nobreza dá de ombros. De repente, a câmera filma de baixo para cima, filma de onde está o povo, junto com ele, com sua visão, a rainha lá no fundo do plano, no alto e na penumbra. Por que essa afinidade de olhar com o povo, se ele em nenhum momento foi uma questão no filme para Sofia? Não haveria um consciente ou inconsciente populismo nessa escolha de como filmar esse momento-chave? Não é uma operação incoerente em um filme durante o qual as ações da protagonista são constantemente legitimadas?


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