in loco - cobertura dos festivais
Matéria de Composição,
de Pedro Aspahan (Brasil,
2013)
por Raul Arthuso
Ao
redor do som
Matéria de Composição começa
com uma sequência de diversos planos de uma casa vazia sendo
desmontada, usando como referência visual os detalhes das
portas e janelas que compõem a construção
enquanto deixam de ser o que realmente são - ou seja, portas
e janelas - para tornarem-se objetos amontoadas em um grande depósito
de inúmeras portas e janelas também retiradas de
sua função original. Uma música pontua os
planos, como que tentando produzir em sons os ruídos do
som direto original da filmagem, excluídos da cena no processo
de montagem.
Ao longo dessa sequência de depuração - onde
portas e janelas perdem sua função prática
e tornam-se matéria formal - é impossível
não pensarmos no cinema mineiro da última década,
em especial os filmes produzidos pela Teia, em sua marcante característica
de um apurado olhar para as formas de objetos e seres no quadro,
pontuando uma busca por uma pureza que essas formas possam exprimir
sobre o que é filmado e um elogio da beleza que passa sempre
pelo mínimo, o comum. Porém, logo em seguida vemos
que esse início é uma pista falsa, ou melhor, uma
armadilha. Matéria de Composição não
está necessariamente interessado nas imagens desfiladas
até aquele instante, mas no som. O filme mostra o processo
de composição musical de três personagens
diferentes a partir do conjunto de planos dados no prólogo.
É a via contrária: a depuração inicial
das janelas e portas serve como estopim para um estudo do processo
de composição.
Pedro Aspahan parece interessado no entendimento do processo de
formação de estruturas, da passagem das idéias
para formas, e o passo seguinte de torná-la arte, ou algo
palpável - que na música encontra um campo fértil
pois, dentro das artes figurativas, é ela que lida mais
abertamente com a forma, o abstrato, as estruturas em estado puro.
Contudo, o cinema é uma arte que lida com um lado menos
abstrato do mundo e, se encontra a música quando se fala
em estruturas e processo mental, escapa completamente quando um
filme se faz de pessoas, lugares e objetos na frente da câmera
e ruídos codificados intelectualmente na frente do microfone.
Essa é a armadilha: se é possível um espelhamento
entre a composição musical e a fílmica, a
depuração das partes de uma casa em formas é
quase descabida no cinema.
Em vários momentos, Matéria de Composição
cai nessa armadilha ao tentar agenciar uma série de
procedimentos, como a câmera lenta, os efeitos de luz e
sombra no quadro, a filmagem metonímica das sequências
para decompor o documentado. Na maior parte do tempo, há
uma asfixiante sensação de um filme feito para ser
uma tese, um ensaio para além das proposições
de encontro com o outro, personagens, observação
e narrativa a que Aspahan se abre (ou usa como ponto de partida).
Isso se verifica em como Matéria de Composição
é um filme articulado a partir de muitos planos detalhes,
mesmo quando há um desejo mais explícito de observação,
como na cena em que o silencioso compositor dá última
música toca ao piano enquanto a câmera transita entre
planos recortados de sua orelha, sua nuca, seu olho.
Por outro lado, há a beleza plástica do movimento
dos instrumentos nas traquitanas na parte do segundo compositor
- que se coloca ativamente falando com a equipe, criando uma dinâmica
livre da condução do momento da filmagem. Daí
que a única possibilidade de expressão das personagens
seja pela quantidade de fala - o primeiro compositor e o grupo
com alguns músicos estrangeiros, de fala elíptica
e interrompida; o segundo compositor falador; o último,
um maestro bastante silencioso. Mas, nisso, há mais uma
armadilha para o filme: a caracterização das personagens
pelos sons cria outro paralelismo, pois parece que Aspahan quer
também definir a música composta por cada uma das
personagens a partir dessa característica, como se ela
expressasse, no fundo, a personalidade de cada um deles.
O fascínio pela discussão da função
e forma, da expressão em si das estruturas, dos meadros
mais básicos da construção das coisas, as
relações de medida, a passagem da idéia à
forma e desta para o lado prático, faz de Matéria
de Composição um ensaio em certa medida já
codificado pela produção teórica e crítica
não apenas na música e no cinema, mas em outras
formas de arte (mais abertamente na arquitetura com a Bauhaus
e o Modulor de Le Corbusier). Há uma inocência na
crença de uma revelação possível pelo
código formal e estrutural que remete a um projeto ultrapassado
de significação pela arte . Por mais prazeroso que
seja ouvir muitos dos sons e ver algumas belas imagens de Aspahan,
a agenda não faz muito pelos personagens, pela música,
menos ainda para o filme.
Janeiro de 2013
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