O Sabor da Melancia (Tian bian yi duo yun),
de Tsai Ming-liang (Taiwan, 2005)
por Cléber Eduardo

Mudar para se repetir

Na primeira sequência de O Sabor da Melancia, duas mulheres cruzam em sentido contrário, em um corredor público, sem olhar uma para a outra. É como se não existissem. A imagem seguinte é a de um casal fazendo sexo com uma melancia entre eles. Mal se tocam diretamente, estão perto e separados. Na última seqüência, o protagonista sem nome, o mesmo da cena de sexo com melancia, cumpre sua função como ator pornô. Transa com uma mulher morta (pornô = necrofilia), olhando para outra, à sua frente, em uma janela gradeada – levando-a a um orgasmo à distância, provocado só pela imagem. Sexo sem contato físico, com um corpo morto a intermediar o prazer. No momento clímax, ele larga a atriz morta e goza na boca da  mulher na janela, moça com quem tem uma relação silenciosa ao longo do filme (retomada de uma obra anterior de Tsai Ming Liang, Que Horas São Ai?). Seu olhar não se dirige ao dela, pois, entre eles, há uma parede. Expressão de sofrimento: a dela é de dor profunda, rosto colado na genitália dele, lágrimas nos olhos, sêmen na boca.

Esses três momentos mencionados – o do encontro sem olhar no corredor, o do sexo com a melancia no meio e o do gozo com uma parede entre o casal – não são os únicos marcados pela “ausência”. Sim, é de ausências, acima de tudo, que trata Tsai – e não apenas aqui. E essa ausência está o tempo todo nos sendo jogada nos olhos (agora apenas aqui), como na  seqüência ambientada em uma locadora, na qual o casal de protagonistas começa a se agarrar entre as estantes de filmes. Quando ela vai iniciar uma felação, ele cobre o rosto dela com sua blusa. Essa negação do olhar do outro, da integração, é uma obsessão de Tsai. Sua filmografia está toda escorada na falência da expressão afetiva e da interação física, sempre mostrando os personagens como ilhas: mudos, um tanto imbecis, envolvidos em performances cênicas, de um minimalismo que faz esquina com o clichê de cinema de autor. No entanto, essas performances do silêncio estão abertas ao humor, à ironia, à crueldade, de modo a se exorcizar parte da dor manifestada. Mas a dor, mesmo passiva, mesmo contida, mesmo naturalizada, predomina.

Em O Sabor da Melancia, a incomunicabilidade, porém, soa como mais do mesmo. Desde a escolha da melancia como substituta da água, e da pornografia como filtro para o sexo (ambos forças vitais), Tsai insiste em criar códigos e símbolos para manter sua visão do sujeito contemporâneo em Taiwan. E assim vemos um mundo de afetos autistas, de erotismo sem entrega, de uma mecanicidade das ações que, quando somada aos sucessivos momentos de nonsense assumido e à variação dos números musicais insólitos, amplifica o absurdo do universo encenado. Sim, a Taipei de Tsai está enferma, como esteve antes. Ora há água demais (O Buraco), ora de menos (O Sabor da Melancia). Mas essa relação da doença afetiva dos personagens com a doença da cidade e do país é algo sempre nebuloso, talvez por trazer algo de muito específico de sua origem, que nos veta uma aproximação mais íntima, limitada pela nossa falta de chave de acesso às singularidades culturais chinesas (de Taiwan).

Se parece colocar em crise seu próprio mundo autoral (como defendeu o colega Felipe Bragança em uma troca de emails), Tsai, com seu insistente senso de auto-paródia, não tem controle sobre sua crise e, mesmo contaminando a seriedade de seu material com circunstâncias grotescas, tolas ou exóticas, revela sinais de redundância e de paradoxo em sua estratégia. Com todo o despiste oferecido por esse humor do absurdo, que vagamente lembra o do holandês Jos Steling, e que é uma releitura particular do de Jacques Tati, O Sabor da Melancia faz força demais, e repetidamente, para “significar”, para dar um sentido para o insólito, para fazer do quase surrealismo uma metáfora sobre o isolamento. Se é organizado como uma sucessão de esquetes singulares, com imagens empenhadas em criar estranhamento e adquirir estatuto de autonomia em relação à narrativa (como em Intervenção Divina, de Elia Suleiman), sua busca de um não sentido não esconde a busca de sentido único. A solidão do homem em comunidade o atormenta como artista de tal maneira que seus filmes parecem empenhados apenas em cumprir o desafio de manter a obsessão sem deixar de encontrar novas maneiras de filmá-la. Dessa vez, deixou a receita à vista. O Sabor da Melancia é uma tentativa de ser ao mesmo tempo todos os filmes de Tsai (sobretudo Vive L’Amour e O Buraco), e de ser um filme diferente de Tsai, com os mesmos temas do diretor.

O desejo de operar uma mudança de tom e de representação, porém, apenas evidencia algo já mostrado antes com mais impacto (e mais originalidade). Há nessa manutenção da obra uma inversão de atitude diante da situação apresentada. Tomemos o exemplo da seqüência final, em que, como em O Buraco, termina com um contato pela passagem no teto. A diferença é que, no outro filme, o buraco era ponto de encontro, por meio do qual o casal, que se encontrava em um prédio sem trocar palavras, iria se conhecer. Em O Sabor do Melancia, o buraco (a janela), através do qual o casal terá seu contato sexual, é espaço de um abismo, de experiência desoladora, solitária apesar de a dois (e mais a equipe de filmagem), com alto grau de degradação afetiva.

A singularização radical de sua proposta não diminui em nada o reconhecido da marca Tsai, da qual ele demonstra ter consciência, e a não deixa de alimentar. Seu cinema é o do lugar de onde se olha a cena. Há em seus filmes um formalismo do plano, às vezes pelo maneirismo de se conseguir um efeito plástico, outras vezes para se resolver a cena sem precisar decupá-la por meio dos cortes, invariavelmente alcançando uma sofisticação de mise en scène aparentemente protagonista de seu projeto. Sim, O Sabor da Melancia é um filme em crise, no sentido de tentar expressar o absurdo com o absurdo (em algumas das imagens mais raras do cinema contemporâneo), mas também é um filme ciente de seus macetes significantes, atrás de imagens-símbolos para serem decodificadas ou intuídas.


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta