Memórias de Xangai (Hai Shang Chuan Qi),
de Jia Zhang-ke (China, 2010)

por Fábio Andrade

A cidade dos mortos

“Pity the bullet and pity the man
Who both find their place in the same sad plan
Who both are like the barrel going over the falls
Crying all the way down, I never asked to be involved”

“To the Dogs of Whoever”, Josh Ritter.

"I held your heart, a giant wand, all tell of sorrow
And history begins to be blue and brown eyes"

"Graveyard", Feist.



Nos primeiros planos de Memórias de Xangai, a escultura de um leão em bronze observa, imóvel, prédios em decomposição na paisagem da cidade. Com uma flanela, um homem lustra cada detalhe da escultura, que a câmera de Jia Zhang-ke revela em closes. Em seguida, um corte gira a câmera em 180 graus, filmando de frente o leão de bronze, tomando o ponto de vista da cidade em ruínas. A escultura é parte de um par que se impõe frente a um prédio bem conservado, protegido por uma sequência de barricadas. Na fachada, letras em dourado identificam: Bank of Communications.



Esse movimento inicial mostra que, mais do que dar o contraplano da História, Jia Zhang-ke está interessado sobretudo em uma dialética, em resituar os dois planos em um diálogo que as barricadas do progresso tentam impedir. A História maiúscula, esses imponentes leões de bronze, não será descartada em nome das histórias pessoais que serão desfiadas nos despoimentos subsequentes. Ao contrário, o trabalho de Jia Zhang-ke é justamente o de implicar essa História na vida das pessoas, de restituir uma relação que as barricadas da História oficial se esforçam por minimizar. As letras douradas, os leões em bronze, os prédios em decomposição, o homem e sua flanela: todos são parte de um mesmo encontro, de um mesmo triste plano, de um mesmo barril que é arrastado corredeira abaixo.

Assim como 24 City, o trabalho de entrevistas de Jia Zhang-ke encontra ecos inevitáveis por aqui no cinema de Eduardo Coutinho. De fato, há algo a ser apreendido pela fala que não está somente no que é contado: aqui e ali, despontam palavras em inglês já absolutamente incorporadas à fala, que contrastam com as histórias contadas sobre uma época em que tais estrangeirismos tinham um sentido muito diferente. Mas há diferenças fundamentais. Por um lado, nos filmes de Coutinho a matéria é usada para falar da estrutura: interessa menos o que as pessoas têm a dizer e mais o quanto a maneira que elas dizem pode incidir e reverberar na estrutura armada pelo próprio filme e revelar algo sobre ele e sobre o cinema. É aí, nesse encontro com a estrutura, que a matéria – o que elas dizem e como elas dizem – volta a ter sentido (algo muito claramente expresso no protocolo quase científico dos enquadramentos de Coutinho). Nesse sentido, Memórias de Xangai está mais próximo de Vincere, de Marco Bellocchio, pois não é a matéria que retoma forças ao encontrar a estrutura, mas sim a própria estrutura que constrói a matéria. As entrevistas só fazem sentido, aqui, por estarem colocadas lado a lado com outros regimes de registro e criação imagéticas: performances warholianas, pequenos interlúdios musicais, observação direta do cotidiano, reencenações. Interessa menos cada uma dessas instâncias, e mais o fato de todas elas serem colocadas em convívio.

Assim como Jean-Luc Godard cria, em Filme Socialismo, uma estrutura que reproduz o percurso do próprio pensamento, a impureza de registros de Memórias de Xangai é como a concentração que gera a apreensão (e não uma escritura) da História: depoimentos extremamente pessoais se somam a uma apreensão de mundo que incorpora muito mais do que a simples ordenação dos fatos. Mas, enquanto Vincere destrincha essas instâncias conviventes que geram o super-homem, o sujeito de exceção (mesmo e especialmente quando ele se torna um monstro), Memórias de Xangai está mais interessado na maneira como elas se colocam na vida das pessoas comuns. A sensibilidade moderna passa pela canção (que dá, inclusive, o belo título em inglês do filme: “I Wish I Knew”), pelos retratos (há, inclusive, uma mulher que se casa com um), pelas ausências.

No leão de bronze que contempla a cidade em dissolução do primeiro plano, há também um outro binômio que é justamente o que faz com que Memórias de Xangai seja não somente um registro (múltiplo, que seja, mas um registro) da História, e se torne de fato um interventor. Pois a escultura, a História, se coloca imóvel, impotente diante dos carros que entrecortam sua vista da cidade; e a cidade, cheia de vida, segue apartada em seu movimento da cristalização da História. Se Jia Zhang-ke promove justamente a reconexão entre as duas pontas, é por ter encontrado uma ferramenta capaz de conservar tanto a cristalização das estátuas quanto o movimento da vida: o cinema.

A memória de Xangai passa pelo cinema, pelos rostos dos atores que voltam à tela em idades diferentes, pelas margens do rio Suzhou hoje já irreconhecíveis às margens de Suzhou River, de Lou Ye, filmadas apenas dez anos antes. O cinema é uma ferramenta transformadora justamente por sua capacidade de conservar a história como movimento dos corpos, como algo cristalizado em transformação. Memórias de Xangai se torna precioso justamente ao entender essa dupla condição. Com um truque de espelhos, é possível fazer uma entrevistada desaparecer lentamente dentro do plano, mantendo seu espaço vazio, em imagem capaz de sintetizar todo o movimento que o filme dá a ver. Com a articulação entre depoimentos e reencenação, é possível trazer de volta os mortos, fazer com que eles retomem as ruas por onde andavam, e de onde a História se esforça por apagá-los. É aí que o cinema pode se tornar uma ferramenta verdadeiramente política. O mundo é um eterno canteiro de obras, soterrado sistematicamente por camadas de porvir. Mas sobre os escombros de um tempo que foi, e as armações de um tempo que virá, as estátuas dançam. 

Agosto de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


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