edição especial curtas brasileiros
2009 A percussão do visível
por Luiz Soares Júnior
O
Menino Japonês, de Caetano Gotardo (São Paulo, 2009)
No
primeiro plano de O Menino Japonês vemos alguém escutar um headphone
num ônibus em movimento. É um plano aparentemente sem integração diegética (sem
função narrativa, digamos) com o resto do filme – o mesmo podendo ser dito de
planos ulteriores, esparsos aqui e ali, que nos mostram pessoas executando ações,
ou simplesmente esperando ou sendo esperadas, sofrendo a ação da duração
ou imprimindo-lhe um rastro (pessoas em contra-plongée, vistas do
alto de um apartamento, atravessam uma rua em São Paulo ou simplesmente trafegam
pela calçada) ou uma pegada (esperam pelo ônibus, ocupadas em outras micro-ações,
envergando celulares ou erodindo o próprio corpo com movimentos infinitesimais,
como é o caso de um homem que tateia o próprio rosto). De alguma maneira, podemos
deduzir (ou somos levados a deduzir) que o primeiro plano (do rapaz escutando
o headphone no ônibus) e os planos “casuais” das pessoas em tráfego pertencem
ao vídeo que um amigo realizou e que, numa cena que media esta “colagem” de imagens
em aparência desconexas, resolve mostrar para outro amigo, no apartamento no qual
se encontram: “Eu só filmei coisas que aconteceram na rua. Seria estranho uma
imagem assim” conta o cineasta para o amigo, Caetano, enquanto contemplam a janela
do apartamento vizinho, onde um homem passa roupa.
Assim como não ouvíramos
o som escutado pelo rapaz no primeiro plano, não vemos o vídeo que o amigo mostra
para o outro; e O Menino Japonês vai se construindo contrapuntísticamente
através de uma série (séries) de variações e/ou disjunções entre imagem e som,
ou entre presença e escuta. Ou ainda: entre narrativa – oral, contada, cantada,
ritmada, entrecortada pela pausa e pelo monossílabo, edulcurada por uma expectativa
que modula a voz de Caetano no stacatto sincopado de um puro possível
– e gestos, mais ou menos indicativos, da iminência de uma relação ou de uma
ação entre os dois personagens (não se sabe se tão iminente assim, não
se sabe se realizável ou reciprocamente desejável). Iminência esta que
percussiona (mais uma vez nos encontramos na seara musical) a matéria visível
do filme com o seu tempo narrável/contável, dando-nos uma mostra, no mínimo ambígua
e desnorteadora, das interações (ou antes: ressonâncias) que entretêm campo e
fora de campo no cinema.A
escuta, ou narrativa contada tenta ocupar um espaço que a imagem nega ou retrai;
ela avança, de forma tateante e instável, como um sismógrafo que registra as investidas
e as escapadas do tremor, o seu antes e o seu depois. Ela pode tomar a forma de
um inventário das ações cotidianas, na fala do amigo cineasta finalmente perfilado
diante do outro (em um plano médio que nos sugere uma aproximação vacilante),
à altura da voz e do ouvido na qual esta se aconchega, nem tão longe a ponto de
instaurar uma figura do interdito, nem tão perto a fim de assegurar o contraforte
de um contato poroso entre imagem e escuta, entre o corpo que se põe e
a voz que o descreve/transcreve em signos puramente imateriais, temporais.
Ou a forma de uma escala do imaginário, quando Caetano pergunta ao amigo, diante
da fuga do “passador de roupa”, agora num plano mais distanciado que rechaça a
singularidade do indivíduo até então “visado” pela adjunção de um outro apartamento,
onde piscam as luzes de uma árvore de natal: “o que você acha que ele foi fazer?”
E o outro responde: “foi guardar as roupas... depois, pegar um copo na cozinha.”
Todo plano em cinema pede (em alguns casos, implora) para
ser preenchido pelo imaginário do espectador, todo plano contém buracos negros
ou “foras de campo” que asseguram um lugar dentro do filme “ao meu ego” ou à “minha
circunstância, cultural e histórica”, mas a cadeia de projeções e distribuições
que a escuta suscita em O Menino Japonês é tão exuberante, que o lugar
que a platéia ocupa é constantemente variado. Ou melhor: a platéia é obrigada
a trocar com frequência de lugar. Esta “ciranda rotativa” do lugar do espectador
chega a ser emulada pelo filme, na sequência de planos dos apartamentos vizinhos
frontais aos dois personagens. Em um dado momento, Caetano tenta ampliar o circuito
da “causalidade imaginária” que a narrativa vai entretecendo; eles se dizem: ok,
o rapaz foi pegar um copo d’água na cozinha, deixou o copo na sala (a sala, que
é tudo o que lhes é dado a ver) e saiu. Mas por que ele não bebeu a água? ele
não tava com sede? Aqui, Caetano tenta passar do campo das ações para o das intenções;
ou retroceder da mão, portadora da ação (no caso, a ação-espreita de
deixar o copo d’água ali, sem bebê-lo, objeto decorativo ou natureza-morta, mais-valia
do signo) para o elo inicial da cadeia, no caso a Necessidade ( beber ou
não beber a água, se estamos com sede?); e o cineasta redargüi: “Da sede eu não
posso dizer, porque não dá pra ver; eu só tô descrevendo as coisas visíveis”.
Mas
a grande vocação “mediúnica” ou presentificadora do cinema reside justamente nisto!
Neste trânsito entre as coisas presentes e ausentes, mesmo que ausentes há pouco
tempo e logo restituídas à presença; as entradas e saídas de cena, o quadro e
o fora de quadro, a posição e oposição do contracampo: uma arte que testemunha
os vetores circulatórios e distributivos do tempo, este grande avatar de refigurações.
Das prestidigitações de Méliés às elipses em Goodbye South Goodbye; da
arte de palco giratório e de posições alternadas em Renoir, Ford, Hawks, Borzage;
da transição do tempo imanente e concentracionista, na infestação de closes em
Um condenado à morte escapou, ao tempo liberto e fluido, plano-sequência
da Graça, ao final do filme. Ora, este desvio inicial da
narrativa de Caetano – ele não bebeu a água porque não tava com sede? – não seria
uma armadilha da escuta, um estreitar-se mais insidiosamente, senão do corpo
daquele que me faz frente/e front de resistência (contraplano e contracampo),
mas de um reduto ainda mais secreto (e diria mesmo: obsceno), de suas intenções,
da nascente do Desejo? Então, a escuta não apenas alarga e faz ressoar o campo,
mas igualmente o pode estreitar, infiltrar, afunilar, tornar infinitesimal, mais
epidérmico, mais próximo e tépido, avizinhá-lo aos escaninhos do corpo, à sua
reserva secreta de figuras, ainda por-vir, por-desvelar? O
cineasta resolve prosseguir o “jogo” de Caetano, mas tenta transformá-lo em um
cotejo linear, plano versus dizer: o plano seguinte nos mostra uma
mulher sentada diante da TV, tv que não vemos, mas cuja reverberação ilumina a
mulher parcialmente. “O que ela vai fazer? O que está vendo?”, é o blefe do cineasta.
Ou seja: a narrativa agora tenta ser subjugada/julgada pela imagem, na medida
em que o objetivo agora é encontrar um “conto” que corresponda justamente a
uma imagem (na contramão do que nos ensinava Godard com seu mot d’ordre:
“não uma imagem justa, mas justo uma imagem”), uma narrativa conforme à
imagem vista por ambos (verossímelmente conforme, já que o que importa para ele
são coisas visíveis, coisas que ele possa descrever, o que pressupõe um
ideal de conjunção/conformação cartesiano “claro e distinto” entre a coisa vista
e a coisa pensada ou imaginada). Mas eis que o esconde-esconde
continua, e Caetano encontra agora uma outra narrativa, um conto que não
se ancora/ serviliza diante da imagem como o anterior (o do homem passando roupa),
mas que desalinha, ou mesmo rompe as bordas do campo, em uma operação que emula
os recuos e os distanciamentos dos personagens um em relação ao outro: a história
do menino japonês. De onde vem e para onde vai esta história do menino japonês,
intempestivamente – ou nem
tanto assim – sacada do bolso, sem tempo nem espaço onde caiba? Ao contrário
de Sherazade, que se afasta/adia a Morte através da cadeia imaginária – os contos
que remetem a outros contos, o Eros, agregador e reprodutor contrapondo-se a Thanatos,
o ponto final na escritura do olhar e da palavra-, Caetano se aproxima de seu
objeto/sujeito de desejo, mas por um caminho em diagonal: um desvio. A palavra
até aqui designara um atalho (narração-inventário de coisas cotidianas, coisas
em comum, e coisas vistas em comum, diante dos outros apartamentos); o atalho
que esta designa no filme é um espreitar e um tatear, sob as trincheiras do significante,
da presença que o anima; não torná-la minha, mero objeto, mas osmoticamente
próxima, no limiar do Outro e do Mesmo, conjugal; mas o atalho nos levara
a impasses (dois pontos de vista que se opõem, duas visadas fenomenológicas irresistivelmente
se confrontam: a do cineasta: eu descrevo coisas que vejo; a de Caetano:
eu vejo coisas que descrevo.). O desvio que a narrativa
de O Menino Japonês imprime ao filme leva a uma extrapolação e uma inversão
cognitiva, digamos assim: extrapolação no sentido de que o desejo entre os dois
personagens, na medida em que foi transferido para uma hiper-narrativa, transborda
os limites de uma realização pulsional imediata – um corpo a corpo, um plano/contraplano,
ou mesmo uma imagem reproduzida por um conto funcional: uma imagem justa
-, e se distribui ao longo de todos os planos: o eixo se dissemina ao longo de
uma complexa rede de paralelas. Como bem dizia Kojéve em suas análises da Fenomenologia
do Espírito de Hegel, vira/é um “desejo que deseja o desejo do Outro”: daí
o voyeurismo que se pode inferir do filme, na mirada sucessiva da “vida dos outros”.
Eu
falei mais acima em inversão cognitiva: os planos das vidas dos outros deixam
de ser objeto do nosso olhar, do conto “justo”, do informe descritivo, conforme
ao que se vê, e passam, numa curiosa aplicação do conceito de aura em Benjamin,
a “devolver o nosso olhar”: o duo minimalista se amplifica num coro polifônico
que reflete o huis clos, mas o reflete um pouco como a série de espelhos
reflete a figura de Kane: monstruosamente ampliando-a, redefinindo-a sob os contornos
sem contornos da megalomania que consumira o personagem, transformando-o na
totalidade do filme; aqui, é o Desejo, mínimo e rarefeito dos personagens,
que sofre uma migração e desterritorialização, e passa a conter
e modular o filme de forma estrutural. Este “desvio
de foco” que a palavra contada imprime à cadeia de planos, esta inflexão
dos fins de um personagem ou narrativa principal em direção à estrutura do filme,
ao filme como um todo, creio que toma um caminho semelhante ao uso do faux-raccord
em Antonioni. O exemplo clássico que me vem à cabeça é o uso deste no plano e
contraplano perto do final de Blow Up (mas desde O Eclipse é sistematicamente
usado por Antonioni): temos um plano que mostra Hennings contemplando as folhas
de uma árvore; contraplano do que ele vê, a árvore; mas o plano seguinte mostra-nos
que Hennings estava com o olho em outra direção; ou seja: “quem / o que olhava
a árvore era a câmera”. Através do faux-raccord, a desorientação dos personagens
se plasma material e estruturalmente em um filme, em um conto reificado até a
medula (o termo estrutural não me leva a nenhuma associação mais, digamos,
visceral que esta), onde tudo diverge e disjunta, por efeito justamente de um
excesso de controle e ordenação do espaço do mundo no capitalismo tardio:
às composições esmeradas corresponde um tempo esquizo, onde somos levados constantemente
a retomar o caminho da narrativa, da sua ordem causalista e teleológica, tanto
quanto os personagens o rumo de suas vidas. Mas, em Antonioni,
o uso é essencialmente negativo: o desejo não possui mais uma cadeia ou linha
por onde transitar, uma trajetória a delinear; curto-circuito sentimental e entropia
são as normas (anomia e suicídio em Os Vencidos; afasia e atropelo tatibitati
de Vitti na trilogia; cisão em um duplo e fixação mortífera neste duplo fantasma
em Passageiro). Em Blow-up, o paradigma deste fetiche pela visão
estrábica e rizomática, transposto agora para o reino das imagens das imagens:
a presença que o olho vê é uma real presença, fruto de uma real conjunção/confirmação
entre ver e ser visto, presentar e re-apresentar; mas a presença que a câmera
vê, é um fantasma, um fantoche, uma ilusão de ótica? E a quem/que pertence este
ponto de vista? Bem,
bazinismos à parte, O Desejo em menino japonês certamente não tem o tônus negativo
antonioniano. Pelo contrário: nos filmes do mestre italiano, ele se bloca e
se desconcerta, fragmentado pelo faux-raccord; aqui, ele se amplifica
e polifoniza, e nesta abertura agrega outros espaços, outros personagens,
reivindica o filme como seu aliado maior de deflagração, mesmo que secreta.
O Menino Japonês, filme que se tece no interstício, nicho do tempo, este
ser sendo por excelência: aqui, se elaboram transições e recortes entre
olhar e ser olhado, contar e ser contado, falar e ser silenciado. “Fecha os olhos
um pouco que eu vou acender a luz”. No plano final, eu posso imaginar –
como o personagem de Caetano, entregue ao silêncio e à treva dos olhos fechados,
no penúltimo plano do filme – que o desejo nômade, que se aventurara ao longo
dos espaços do filme, finalmente encontra um pouso, ou uma foz: velado e aconchegado,
assim como um escrínio resguarda uma jóia ou uma elegia abriga um morto.
A
luz se apaga, ficamos sob a mira de um outro Desejo de Outro; talvez a ronda recomece?
Devo dizer que este “velamento” não é negativo, castrador, mas justamente o contrário?
Uma espécie de “palco secreto e discreto” nos é mostrado, como aqueles em que
se encenavam originalmente as óperas de Mozart, Piccolo teatro antico,
rondas de amores que trocavam constantemente de posição, e portanto de olhar,
como no filme de Caetano – para um amor possível, ou não mais possível... Em todo
caso, um possível. Janeiro de 2010
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