Aquele Querido Mês de Agosto,
de Miguel Gomes (Portugal, 2008)
por Eduardo Valente

Cinema das novidades

Já se tornou lugar comum dizer que a fronteira entre o documentário e a ficção é onde se dá boa parte do que de se faz de mais interessante no cinema contemporâneo - e como todo lugar comum, nem sempre a afirmação é verdadeira. Se é fato que frente a algo como o que nos proporciona este Aquele Querido Mês de Agosto, nossa reação natural é mesmo a de maravilhamento, isso se deve menos pela questão racional de que seu jogo se dá ali nos meandros da tal fronteira, mas pelo simples fato que, da parte dos realizadores, a aventura da filmagem vai pelo mesmo caminho, de descoberta, aventura, novidade. E é aí que reside o choque de um filme como esse, que faz documentário como se fosse a primeira vez, e ficção mais ainda.

O filme de Miguel Gomes (mas que foi realizado dentro de um sentido bastante forte de trabalho coletivo, como aliás sempre marcou o que pudemos ver do Som e a Fúria, produtora do filme, e que já fez considerável número de curtas, alguns bem impressionantes) foi filmado em dois momentos distintos. Num primeiro, na região que inspira o filme (Arganil), foi captado um material que, em sua maior parte, pode ser chamado de documental. A partir do visionamento deste material, e de uma pré-edição do mesmo, voltou-se ao lugar um ano depois (sempre no mês de agosto, que tem significado especial por ser a época do ano em que os familiares partidos costumam voltar para visitar, e acontece uma série de festas públicas na região) e filmou-se então a história de ficção que aparece no filme.

Por mais que este "histórico de produção" dê conta de entender o processo que leva ao filme, o mais forte de Aquele Querido... é mesmo a possibilidade de ir sendo pego de surpresa a cada plano, a cada “situação dramática” - seja ela documental ou ficcional . Pois seja mostrar simplesmente um carro de bombeiros andando pela rua, grupos tradicionais cantando suas músicas ou pessoas dando entrevistas, o filme é movido sempre pela lógica do fantástico se dando no mundo à nossa frente. Neste sentido, não parece nada absurdo fazer uma ponte entre o cinema de Miguel Gomes e o de Apichatpong Weerasethakul, talvez o único feito hoje que nos situe minimamente numa mesma forma de olhar para o mundo – embora com artifícios e fins tão diferentes quanto podem ser diferentes Tailândia e Portugal. Inclusive, há um segundo ponto de contato curioso entre os dois: a divisão dos filmes em duas partes bem distintas, cuja conexão é tão direta quanto enviesada, por paradoxal que soe. A passagem entre os dois registros no filme de Gomes é uma autêntica delícia.

Aquele Querido Mês de Agosto também desafia o crítico, como já dissemos aqui mesmo que os filmes de Apichatpong faziam, porque seu encanto vem de uma tal potência audiovisual que desafia a possibilidade de sua descrição. Entre seus momentos espetaculares, vale destacar um que envolve um dos usos mais fortes do artifício da fusão que eu já vi. O fato é que poucos filmes mostram uma alegria tão grande frente ao ato de filmar o mundo, ao mesmo tempo que usa de uma ironia inteligentíssima que nunca torna essa alegria algo “bobo alegre”, pelo contrário, ela parece se pensar e repensar inúmeras vezes, sem perder seu frescor. A falsidade de uma verdade e a verdade de uma falsidade – é disso que se faz o cinema de Miguel Gomes. E, afinal, não é disso que se faz O cinema?

Setembro de 2008

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