ensaios A
alteração como princípio (ou
como a terceira margem do rio Alva) por
Ilana Feldman Controla-te
“Controla-te,
controla-te!”, estas são as últimas palavras ditas pelo personagem Miguel Gomes,
diretor de um filme que está sendo feito, ao personagem de seu captador de som,
Vasco Pimentel. O filme que está sendo feito, e que só aos poucos vai se formando
em nós, é o filme a que estamos assistindo, evidentemente – com a diferença de
que, agora, o mês de agosto já terminou. Agosto, mês das férias escolares do hemisfério
norte e auge de seu verão, é, portanto, o mês da imaginação, dos sonhos, das brincadeiras
de criança, da fabulação. Como diz a música de Tony Carreira, tocada pela primeira
vez no filme sobre a imagem de um caminhão vermelho em movimento (plano que sucede
um desenho, feito por um menino, de um caminhão do corpo de bombeiros), “Se eu
pudesse voltar, de novo sonhar, o faria mesmo, podem crer, e aquele menino eu
voltaria ser”. Assim, disfuncional e distante do utilitarismo
do tempo da produção, o mês das férias torna-se o momento ideal para uma equipe
de cinema rumar à região da Beira, interior de Portugal. Nessa viagem, com ou
sem idealização, compreendemos que as férias, tal como o carnaval, nos coloca
em uma situação de suspensão: suspensão das leis formais e dos códigos estéticos
a que assistiremos a partir de então. Mas, é preciso lembrar, suspensão não significa
ausência, tampouco displicência. Entre o controle e o rigor formal e a deriva
imaginativa, Aquele Querido Mês de Agosto se faz em uma zona de indeterminação.
Documentário, ficção, tudo de uma só vez? Essa pergunta
seria apenas tola se não fosse também descabida, pois tal separação entre uma
coisa e outra não pertence à linguagem do filme, não pertence ao ordenamento de
seus elementos – ainda que, evidentemente, possamos identificar os momentos mais
claramente encenados, como as cenas organizadas pela melancolia do melodrama ou
pela alegria da ironia (ou seria bem o contrário?). Nesse sentido, é uma pena
que tantos discursos críticos, sejam da imprensa diária ou do universo ensaístico,
insistam em tentar decodificar o estatuto de cada imagem, em tentar decodificar
em que momento o filme substituiria a parte documental por sua camada dramatizada,
como se houvesse, de fato, tal virada no filme, cuja passagem entre os “dois registros”
seria marcada, segundo essa leitura, por uma linda fusão ou sobreposição de imagens.
Sem precisar evocar a já gasta “dissolução das fronteiras entre documentário e
ficção”, tudo o que há em Aquele Querido Mês de Agosto é da ordem de uma
permanente com-fusão, como quem torna, por meio da função fabuladora, o
verdadeiro indecidível. Nessa torção da equação visível = real = verdadeiro, empreendida
por tantos filmes contemporâneos (como, no caso do Brasil, Jogo de Cena
e Moscou, de Eduardo Coutinho, Juízo, de Maria Augusta Ramos, Serras
da Desordem, de Andrea Tonacci, dentre outros), Aquele Querido Mês de Agosto
afirma, a cada plano, a intensidade – portanto, a verdade – de seus artifícios.
Desse
modo, ao revelar, interromper ou encenar seus truques e ilusões, o filme não rompe
com o ilusionismo, tal como vemos, logo nas primeiras sequências, na cena em que
um show é interrompido pela queda da energia elétrica ou na cena em que a locutora
de uma rádio local expressa que está a colaborar com um filme de uma gente muito
simpática. A partir daí, diversos momentos igualmente “reflexivos” se sucederão,
como quando o captador de som aparece com seu microfone em forma de “coelhinho”,
quando um filtro suavemente amarelado é colocado sobre a lente da câmera, quando
um contra-plano revela de onde vem uma fonte de luz que está a produzir sombras
(fantasmagorias?) ou quando a equipe, ironizando a excessiva profissionalização
do cinema e explicitando seu aspecto lúdico, alinha centenas de pedras de dominó
ou brinca de jogo de malha. Tomando as palavras de Fernando
Pessoa em seu “Livro do Desassossego” (a referência aqui ao mestre português do
fingimento é irresistível), Aquele Querido Mês de Agosto nos mostraria,
justamente, que “Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder
ter sonhos”. Cabe a nós, na medida de nossa possibilidade e vontade, controlá-los. Alteração Mas
Aquele querido mês de agosto não se controla. É um pouco como o
personagem Paulo “Moleiro”, aquele que, em todos os carnavais, pula bêbado
da ponte sobre o rio Alva. Na definição de um habitante da região, Paulo “Moleiro”
é um tipo que, talvez assim como o próprio filme, “controla as águas como deve
controlar, embora nem sempre as águas o controlem como ele acha que as águas o
devem controlar”. Nessa espécie de desassossego sossegado do filme, marcado pela
ausência de centro, pela autonomia dos fragmentos e pela heteronímia dos personagens,
há o princípio da alteração, operando entre o controle formal e o descontrole
(ou o efeito de descontrole) da imaginação. Tal
princípio pode ser vislumbrado desde o primeiríssimo plano do filme: galinhas
ciscam em um terreiro sob o olhar à espreita de uma raposa. Galinhas vão, galinhas
vêm, conforme a raposa anda de um lado a outro, até o momento em que a raposa
dá o bote, invade o terreiro em direção à câmera e todo o galinheiro se dispersa
atônito. O que poderia ser simplesmente um momento da vida rural do interior de
Portugal, autônomo e desconectado do restante do filme, parece carregar consigo
certo princípio de que, no interior de cada plano, de cada cena, haveria sempre
algo a alterá-los desde dentro. Para além de tantos exemplos possíveis, como,
ainda no início do filme, os fogos de artifício que vão, pouco a pouco, formando
uma imagem da Virgem, é a música – a música romântica, a música “pimba” (como
é chamado em Portugal o nosso “brega”) – aquilo que, realmente, tudo altera.
Pois em Aquele Querido Mês de Agosto as diversas formas de utilização das
músicas não parecem vir da enunciação do filme, das escolhas de seu diretor, mas
– e aí está sua magia – da própria natureza. A natureza do lugar, a natureza
das gentes, a natureza técnica do cinema – que tudo altera. Talvez
seja então esse excesso de transformações “desde dentro”, e não apenas transformações
geradas pelas relações entre planos (relações essas que vão sendo paulatinamente
esboçadas e entretecidas), aquilo que nos proporciona afinal uma intensa sensação
de imanência. Como se os espaços, as pessoas, as festas, a duração das músicas
e das apresentações musicais tomassem conta de qualquer pretensão de estrutura,
de qualquer pretensão de estabelecimento de relações de causa e efeito, de motivação
e ação, de documentário e ficção. Por isso, tentar classificar as cenas, pensando-as
estruturalmente, não é apenas tentar impor ao filme uma lógica que lhe é alheia,
mas é, sobretudo, não se deixar alterar pelo mundo filmado, pelo mundo imaginado. Partindo,
como muitos documentários brasileiros contemporâneos, de uma impossibilidade para
a realização de um projeto inicial (lembremos de Santiago, de João Salles,
de Sábado à Noite, de Ivo Lopes Araújo, e de Pan-Cinema Permanente,
de Carlos Nader), o “fracasso” em Aquele Querido Mês de Agosto é incorporado
à cena propriamente dita (o produtor que não compreende, o orçamento que não é
suficiente) como aquilo que, justamente, o libera para que ele realize seu caráter
lúdico, duplo, ambíguo, intensa e verdadeiramente artificial. Se o sucesso é contra
a idéia de férias, o fracasso, poderíamos depreender, é a condição de sua curtição.
Advém desse caráter lúdico e da inocência de sua liberdade e inteligência, a impressão
de que, a cada plano, Aquele querido mês de agosto está a inventar o
cinema. Terceira margem Mas o
que seria inventar o cinema? Talvez, inventar o cinema seja também inventar uma
comunidade, inventar um “povo”, como dizia Deleuze, que só existe na reação e
na relação com o filme. Distante dos discursos críticos que têm defendido o documentário
como espaço de reposição e revelação da singularidade dos sujeitos ordinários,
Aquele Querido Mês de Agosto explicita que, se alguma singularidade é possível,
esta estaria na relação do filme com seus atores – literalmente amadores
–, mas jamais nos personagens em si mesmos, atravessados por tantos outramentos,
ficções e mediações culturais. “É preciso que a personagem seja primeiro real,
para afirmar a ficção como potência e não como modelo. É preciso que ela comece
a fabular para se afirmar ainda mais como real, e não como fictícia. A personagem
está sempre se tornando outra, e não mais é separável desse devir que se confunde
com o povo”, escreve Deleuze, no caso, o povo inventado de um certo Portugal.
Nesse
sentido, não é por acaso que Aquele Querido Mês de Agosto opte pela música
romântica e pelo melodrama, ou seja, por uma cultura pré-formada, assentada sobre
os clichês do amor e da infância no interior, como organizadores de sua narrativa.
Lembremos da cena em que a personagem Lena tenta escrever uma carta de amor, e,
sem conseguir se exprimir singularmente, pede ajuda ao casal enamorado Tânia e
Helder. Os primos então ditam a carta, em meio a bolhas de sabão e insinuações
mútuas, sugerindo uma série de mudanças para que ela soe mais poética e “verdadeira”,
em um processo de escolha de palavras tão singular quanto comum, tão exuberante
quanto clichê, tão real quanto ficcional. Também não é por acaso que, ao final
de seu desenlace amoroso, Tânia altere o choro em riso. Quem chora e quem ri?
A cantora Tânia ou a vigia florestal Sonia? E quem parte? O primo Helder ou o
jogador de hóquei Fábio? Não temos garantia de coisa nenhuma, a não ser a de que
(com o perdão do clichê), “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que
chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”, para nos valermos dos célebres
versos de Pessoa. Nesse pacto ficcional que se instala entre
os moradores da região e a equipe de cinema, no qual a participação da equipe
é roteirizada, incorporada à cena e implicada no jogo (segundo o diretor Miguel
Gomes, talvez com alguma ironia, por uma questão de “justiça social”), Aquele
Querido Mês de Agosto nos aparece como um filme em potência, um filme
em pedaços, um filme-sonho, um filme-desilusão, um filme-ironia, um filme-canção,
para além de qualquer cinema. Entre um filme e outro, está o mistério da natureza,
dos sons fantasmas “que não estavam lá”, da subjetividade que contamina toda realidade
supostamente objetiva: o jornal de Arganil que incorpora em suas páginas a própria
ficção; o captador de som que capta, simplesmente, o que seu coração ouviu e sua
tecnologia permitiu. E assim, tomando as palavras do narrador de “A terceira margem
do rio”, de João Guimarães Rosa, é apenas por meio da alegria amorosa e encantatória
de Aquele Querido Mês de Agosto que “aquilo que não havia, acontecia”. Setembro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
|