Meia Noite em Paris (Midnight in Paris),
de Woody Allen (EUA, 2011)
por Fabian Cantieri
Andando
na chuva
Hemingway era adepto da simplicidade fluida na escrita. Sua secura
nas palavras empurrava pensamentos e sentimentos para os cantos
não exprimidos da estória. Tudo se encontrava na
ação. Quando se pensa em Woody Allen, lembra-se
logo de sua verborragia, vislumbra-se logo um homem da palavra.
Essa conotação rasa às vezes pode esconder
o que o velho cineasta há tempos já sabe: tudo se
encontra na ação, nos gestos do presente acontecendo,
no gerúndio que empurra os outros dois tempos - passado
e futuro - para novas posições fora da marcação
da vida. O estilo no cinema de Allen certamente não tem
a concisão literária de Hemingway, mas em Meia
noite em Paris, transparece a tal simplicidade fluida no
ato de filmar. Simples pela máxima de Hemingway no filme:
sendo verdadeiro consigo mesmo e seguindo a cadência woddyalleana
de sempre, subvertendo um Annie Hall aqui, voltando (para
chegar em outro caminho) em um A Rosa Púrpura do Cairo
lá; fluido pela urdidura narrativa onde cada referência
literária costura uma referência para o filme.
Além
da escrita de Hemingway, temos o contexto espacial tratado como
um conto de Fitzgerald, rodeado por grandes festas burguesas a
la "O grande Gatsby", uma tentativa de se reinventar
pelas cores, tratadas digitalmente pela primeira vez na carreira
de Allen, como uma nova fase de Picasso, uma libertação
da realidade como os filmes de Buñuel ou as obras de Dali
e Man Ray... Até aí, tudo isso poderia soar apenas
como um exercício intelectual pedante sobre como ele consegue
confluir idéias geniais num gênio só. Mas
dos ditos gênios, o mundo teve muitos, e Woody Allen, cônscio
disso, nunca foi um. Ao contrário de se embrenhar num pacto
da mediocridade, aceita sua reles mundanidade e a toma como ponto
de partida. Joga aberto para todos sua neurose quanto a uma nostalgia
sofrida, e pior, não vivida: a de ser de um tempo deslocado
de uma época vangloriada, os idealizados anos 20 de Allen
- década recheada por seus escritores preferidos.
Em uma viagem para Paris com sua noiva, Gil (Owen Wilson), roteirista
bem sucedido mas escritor de literatura frustrado, se depara com
a oportunidade surreal de conviver com seus ídolos do passado,
intangíveis por seu tempo e peso artístico. Passada
a instantânea fascinação e tietagem, além
do luxo de ter seu livro revisado por Gertrude Stein (Kathy Bathes),
Gil aos poucos se apaixona por Adriana (Marion Cotillard), alusão
a Adriana Invacich, que viria a ser conhecida por seu caso amoroso
com Hemingway duas décadas depois. No filme, o triângulo
amoroso não só serve como engodo dramatúrgico
corriqueiro, mas também como espelho de uma vontade corrente:
a de viver tempos imemoriais. Seja um adolescente querendo ser
punk, uma jovem tentando ser hippie ou um Woody Allen tentando
viver embalado por Cole Porter em pessoa, o passado aparenta ser
sempre mais recheado de sabores que o presente. E lidar com o
presente é naturalmente lidar com a expectativa nem sempre
apaziguadora de um futuro - basicamente, o status quo
da realidade. Viver no passado então é apenas uma
fuga para a fantasia... de novo.
Woody
Allen já disse algumas vezes em entrevistas longínquas
que A Rosa Púrpura do Cairo era um de seus filmes
preferidos, e que seu final era uma das grandes razões
por tudo ter saído do papel. Agora,
seu notório pessimismo se desfalece num aproveitamento
do que a realidade pode oferecer. Enquanto, em A Rosa Púrpura
do Cairo, Cecile era obrigada a decidir entre o personagem
que saía da tela ao seu encontro ou o ator real, optando
pela escolha sábia do concreto, mas se ferrando ao levar
um pé na bunda de Gil (não à toa, curiosa
repetição de nomes); em Meia Noite em Paris,
Gil se retrata ao se confrontar com o mesmo desejo seu em Adriana.
Sendo os anos 20 sua realidade, então é claro que
a belle époque se configuraria como fantasia adequada
para a moça sonhadora. Tendo a opção de imigrar
eternamente para essa nova fantasia, bate a percepção
em Gil de que o cotidiano pulveriza qualquer tentativa de vivência
na fantasia. Não seria mais um sonho, e sim um simples
deslocamento de eras com novos problemas a se enfrentar.
Historicamente, Adriana Ivancich se suicida. O que a personagem
Adriana acaba por fazer não deixa de ser o assassinato
de suas condições humanamente inerentes - sua inserção
inexplicável (certamente, não por Deus, visto o
ateísmo do diretor) num específico espaço-tempo.
Não adianta fugir; nem mesmo a arte
serve mais como solução. Quando o mundo te oferece,
ou restringe, certas condições, há de se
conviver com elas. Se a chuva apertar, pode-se fugir para um teto,
pode-se pegar um carro. Pode-se também apenas aproveitar
a caminhada pelas ruas molhadas de Paris.
Julho de 2011
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