Milk
- A Voz da Igualdade (Milk), de Gus Van Sant (EUA, 2008) por
Cléber Eduardo O
discurso do personagem e o personagem-discurso
Antes
de Milk, Gus Van Sant. Não porque os autores precedem as obras, como proclamavam
os jovens críticos dos Cahiers du Cinema na segunda metade dos anos 50, empenhados
em impor (com doses variadas de idealismo) os criadores acima das criações; mas
porque a disseminação generalizada da Política dos Autores, mais de 60 anos depois,
tornou-se uma prisão para a maioria dos melhores críticos em atividade. Prisão
e comodismo. É sempre mais seguro eleger o diretor-autor como a matriz mais confiável
na análise dos filmes, procurando em seus filmes anteriores a gênese e o norte
das imagens com as quais lidamos, como se, por conta de uma mesma assinatura nos
créditos de diferentes trabalhos, uma camada de coerência já estivesse garantida
de antemão por essa suposta “unidade personalizada”.
Para cumprir seu
dever e chegar ao X da autoralidade nos filmes, mas não necessariamente ao X dos
filmes, o crítico buscará o autor em operações estilísticas ou na recorrência
de tipos de situações, atrás de uma proximidade entre momentos expressivos em
diferentes realizações do mesmo diretor-autor – algo que fica um tanto mais complicado
quando um diretor-autor muda de rumo ou altera seu registro. É fácil romper com
Milk logo de cara, se, admirador de obras mais radicais do mesmo Van Sant
(como Gerry, Elefante e Last Days), o crítico perceber uma
distância qualquer entre o filme e os anteriores. Mas também é fácil abraçar Milk
se, em seu desenvolvimento marcado por um ou outro “lance” mais evidenciado de
“estilo pessoal”, um maior admirador de Van Sant, em vez de estranhamento entre
as imagens e a imagem construída para a filmografia do diretor, encontra no filme
sua carga genética. No primeiro caso, desvaloriza-se a obra, entre outros motivos,
porque ela ameaça Van Sant (ou ao menos o que se espera dele). No segundo caso,
valoriza-se a obra, entre outros motivos, porque ela preserva Van Sant. Nos dois
casos, antes de Milk, vem Gus Van Sant. A necessidade
de afirmar o cinema como arte no mesmo patamar da literatura e da pintura desde
os anos 10\20 do século XX, acabou afirmando o artista acima da arte e o diretor
acima dos filmes, quando os filmes em si mesmos ou a relação entre eles podem
ser feitas de outra maneira, que não passam exclusivamente pela assinatura do
diretor-autor. Não há nenhum interesse em invalidar o autor como estratégia de
análise, o que seria incoerente tendo em vista a ampla utilização dessa estratégia
por esse crítico, mas, sim, relativizar a “onimportância” da autoria e da autoralidade
na análise dos filmes. Não adianta reivindicar que se “vá aos filmes” como um
mantra, se, ao irmos aos filmes, não conseguirmos ver nada além dos autores nos
filmes, ou de suas nacionalidades cinematográficas ou do campo de forças culturais
de onde emanam suas posições. Nada além de uma simbolizada pessoa física, ou de
um caldo cultural nacional-cultural, que, por meio dos filmes, será revelada como
pessoa artística ou como pessoa nacional e cultural. Mas,
em cinema, como em literatura, há é a instância narradora (não a autoral, não
a cultural, não a nacional). Uma função, não uma pessoa. A narração é o que nos
importa, porque, pessoa física, nacional e cultural à parte, ela é a organizadora
do filme. Uma quase abstração, sim, mas que, na tela, ganha “materialidade” (efeito
de). A partir dela, ok, amplia-se o enfoque. Não antes. Ou filmes só farão sentido
ou terão interesse crítico se estiverem em relação com referentes fora deles (o
autor, o país, a cultura). Milk rompe com a imagem que só nos dá presenças,
como é o caso dos três filmes de Van Sant mencionados acima (Gerry, Elefante
e Last Days), que recorrem a essas presenças de modo parcial, sem nenhum
tipo de simbolismo ou construção de sentidos gerais. Se nesses filmes anteriores
havia imersão com miopia, evidência e opacidade em uma mesma imagem, Milk
procura significar suas situações e funcionalizar seu personagem, cuja trajetória
é carregada de sentidos muito claros e amplos. A
vida do militante homossexual Harvey Milk nos é mostrada em sua missão: a luta
e o sacrifício da própria vida em nome dos direitos dos gays assumirem suas opções
sexuais e suas atitudes públicas sem serem presos ou agredidos. Tudo é claro,
quase pedagógico em alguns momentos, sem a força da ausência dos outros filmes,
com a perda da energia dos excessos de lógica dramática. Mas esqueçamos por alguns
momentos, se isso é possível, da filmografia de Van Sant. Se os defensores incondicionais
do diretor podem lembrar de filmes menos ousados dele, como Gênio Indomável,
de modo a rebater os ataques de traição da autoralidade e de concessão à percepção
necessitada de explicações, deixemos essas contextualizações temporariamente de
lado para procurarmos respirar outros ares. Talvez seja proveitoso pensar como
Milk se situa em seu próprio momento: o cinema contemporâneo à sua realização.
Não se pode ignorar, nessa relação com o filme, o fato dele ser organizado em
torno de uma (auto)organização dos últimos anos devida do protagonista, quando
esse desconfia a morte próxima. A narração é dividida com o personagem e, nesse
sentido, dá voz para ele se conduzir. Efeito
de auto-condução. Porque é uma cessão de voz mediada, porque é a voz de Milk (personagem)
por Milk (o filme). A narração é ao, mesmo tempo, centrada nessa voz pessoal,
com a qual se alia, e ao mesmo tempo centrada na impessoalidade, justamente por
mostrar o personagem como ele aparentemente ele quer ser mostrado. Terceirizar
a narração, como faz Milk, não é terceirizar uma posição, como se sente em Milk. O
lado pessoal do filme é, justamente, amalgamar-se com o protagonista. Mas quem
ele é no filme? Um homem-discurso, um porta-voz dos homossexuais de São Francisco,
um ativista em briga com os conservadores, que, nas raras horas de folga, aparece
em cenas de família gay, mas sem deixar de lado a aura de mártir de uma causa
democrática. Assim ele se vê no filme. Assim o filme o vê. É
notável como os filmes cada vez mais vêm recorrendo às mediações internas, às
vezes simplesmente por meio de uma voz da consciência que se torna uma voz do
filme, às vezes, como é o caso em Milk, de Gus Van Sant, e de Benjamin
Button, de David Fincher (para ficarmos com outro filme do Oscar), por meio
de situações na qual um personagem emite seu testemunho. O gravador e o diário
como testamento de vida, com a consciência da morte próxima. Nenhuma novidade,
mas esse caminho, hoje, é quase uma muleta, que quase nunca se auto-problematiza.
É a necessidade do testemunho, da voz de dentro, do personagem que também conduz,
das terceirizações das narrativas. Se em Benjamin Button há um bacanal
de narrações (como se a soma delas nos ajudasse, pelas supostas conseqüências
fabulares, a aceitar o tom fantástico), Milk é mais cuidadoso – muito cuidadoso
na verdade. Coloca esse relato em cena e limita ele à cena, como um relógio, porque
é um testamento de quem vai morrer e sabe disso porque conhece o mundo onde vive
e qual seu papel nele. Relógio, sim, porque é um marco dramático dentro de uma
narrativa que nesse momento quebra a linearidade do tempo, porque a linearidade
é do personagem e não do filme.
O que faz Harvey Milk no gravador é o
que Pasolini fala do narrador morto: é preciso estar fora da cena para poder narrar,
é preciso ter acabado tudo para ver em perspectiva. Harvey Milk é o narrador morto,
quando ainda vivo (não completamente, porque ele ainda vive um tantinho depois
de narrar). É preciso organizar por dentro, pelo personagem, como se ele fosse
mais confiável (deveria ser o contrário). Mas é preciso ainda, no caso de Milk,
conscientemente, expandir a voz do personagem, do microfone para o cinema, e intermediar
esse discurso, talvez deixando claro que as operações miméticas não apagam a mediação
(a do filme, não a do personagem). O filme coloca-se, dá voz e produz voz. E,
nesse caso, é preciso superar qualquer distância com o referente (pessoal e histórico)
por meio de fotografias em diálogo com as imagens, por meio dos rostos dos "reais"
ao final, por meio de soluções que colocam o filme entre índices históricos e
momentos nos quais explicita sua construção. Há um tipo
de aproximação em Milk que visa criar um mundo de retóricas, posicionamentos
e reações que passa muito perto do oficialismo rebelde e de um acompanhamento
por dentro de estratégias de campanha política. É um filme sobre campanha, de
campanha, e assume isso – motivo pelo qual os
personagens definham. Esse definhamento tem a ver com uma maneira de filmar, porque
as escolhas do que, do quanto e de como se filmar está determinando sempre esse
“personagem-discurso”, sem a mesma equivalência de filmar um discurso que é personagem.
Tem cenas de lar, tem cenas de casalzinho, de paquera, mas isso não é encontrar
personagem no discurso, mas continuar a encontrar discurso no personagem. A menção
aos 50 anos, que retorna ao final, é uma lógica tão política quanto poética, porque
Harvey Milk morre, justamente, após dar sentido à sua vida. Mas o sentido tem
seu preço, o preço do mártir, do mito, da narrativa que faz tudo se fechar: o
discurso no personagem e na narrativa. Harvey defende que todos saiam do armário,
mas, na pele, ao se colocar na vanguarda do “assuma a si próprio”, terá de arcar
com o peso da visibilidade incômoda. E é esse o limite do personagem, o de ser
visto como um papel, uma função, longe da qual ele inexiste, mesmo com Sean Penn
a encampá-lo, talvez com algum excesso de “golpes de construção”, possível de
existir no personagem real, mas presente como desenho de interpretação na tela.
Mas e daí? O personagem é sempre o valor supremo? Não pode
valorizar o discurso, já que, afinal, o personagem era discurso e presença, retórica
e performance? Pode. Mas essa opção, de alguma forma, oficializa o filme, dentro
de seu espírito progressista. Oficializa como forma, óbvio, porque o oficial é
forma, sempre. Claro que é outro tipo de oficial, mas o oficial de um segmento
– falando aqui de segmento de cinema em primeiro lugar, para não entrarmos na
questão dos estudos culturais, da origem do discurso. E se esse oficialismo não
cheira bem, sobretudo para quem se interessa especialmente pelo segmento mais
radical de Van Sant, é um oficialismo acima da perspectiva autoral. Ou seja, mesmo
se fosse filme de um diretor sem filmes conhecidos ou valorizados, Milk
seria comum. Março de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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