in loco - cobertura dos festivais
Floresta dos Lamentos (Mogari no mori), de Naomi
Kawase (Japão, 2007) por
Felipe Bragança Catarse
feito um cafuné
Naomi Kawase estava já na memória
desde que seu Shara tinha aparecido, chuvoso, celebrando a vida como explosão
de movimento (um movimento não de ida a um lugar, mas de agitação). Agora, com
Floresta dos Lamentos, ela refaz-se num espelho quebradiço – encontra-se
aqui a sensação de um nascimento que é também o de um aborto, de uma negação:
o filme é um útero em que habita a memória do corpo/imagem todo. É
um filme que narra o mínimo não por fetiche do gesto banal, mas pela atenção ao
afeto febril. É antes de tudo um ritual de inflação e deflação que nos convida
para uma dança murmurosa no meio da mata – dançar com fantasmas é dançar com um
filme. É um ritual de nascimento, grito, histeria, choro, dor, explosão, água
vindo rápida e pesada! É a câmera que flutua, que flutua o tempo todo (não está
na mão, está no vento). É um olhar que vai nos liberando do estado descritivo
e vai nos deixando pairar por entre as coisas. Deixando o olhar vagar, feito vento,
brisa, transpiração... A
construção das panorâmicas sem começo ou fim, vão indicando essa forma de flutuação
pesada, em que sempre parece haver algo a se ver, mas nunca há, somente mais verde,
mato, mais trilhas, mais paisagem, mais eternidade desordenada. Uma eternidade
dolorida! Mas imensa... Imensa e cheia de passagens de luz entre-folhas. Naomi
Kawase filma a paisagem como a imersão no próprio corpo de uma protagonista feminina
que é antes de tudo um fantasma. Machiko está no labirinto,
levada por seu guia saudoso e dormente. Nesse caminho de luto, a moça persegue,
ri, se expande, corre atrás do corpo cansado do homem, cuida. Cuida! Procura calor,
adota o corpo do outro, abriga a pele do outro, esquenta, sua, se molha. Catarse.
Naomi Kawase filmou um parto e esse parto é um filme. Um parto de luz boa, mas
luz que machuca. Úmido, quente, dolorido, desesperador, novo, aliviante, fim de
mundo, começo. A sonoridade que se contraí e expande, das
caixas laterais às caixas centrais da sala de cinema, os planos que vão do olhar
aberto do detalhe e ao impacto. Não à toa, o começo do filme é assim: aquele verde
aberto nos joga para um detalhe de um machado numa casca de árvore. Do conforto
espacial ao impacto localizado e duro, seco. O
filme é essa habitação dessa contração criativa do corpo. Não é fácil, não. Não
se trata disso de achar “consolo”, não se trata de “uma forma certa”, como a frase-lema
de uma personagem nos convida a aderir. Não há certa forma, trecho certo, direção
certa ao que se afeta. A coisa se dá em si mesma, como o filme. E aí, se o prazer
se perdeu na memória que não se vai, existe ali ainda o luto como uma alegria
do alívio que nos surpreende: o lamento, a resistência, de um corpo que ri, berra,
corre, explode, nasce de novo! A imagem do cinema está ali
adiante por causa disso: porque é essa acumulação uterina, muscular, nervosa.
Cansativa. Cansativa........ (O que pode um corpo cansado? Acima de tudo é um
corpo que tudo pode.) Um corpo cansado é o começo de um novo corpo... prazer ou
perdição. Não para servir ou obedecer a ordem de uma felicidade
agendada por ansiedade – mas para nos oprimir e liberar, deixar abrir-se o peito
e respirar de novo numa correnteza. Uma correnteza que Kawase costura feito um
cafuné ou um estrangulamento. Floresta dos Lamentos
dói. Contrai. Expande. Não uma imagem-que-dói porque expõe a crueza gráfica, mas
pelo acúmulo de latejar que ela vai sobrepondo como um lamento, um murmúrio repetido,
um ir e vir da visualidade, da narração e da ocupação do espaço... Chorar
por 2 horas não resolve!.... E a coisa se dá assim: de repente, quase sem querer.
Melodia fácil que se acerta sem estudo – dedos no piano vão e vem. Mas que aparece
no meio de um desespero quase infantil, não da fuga (!). Setembro
de 2007
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