sessão cinética
Morte Em Veneza (Morte a Venezia),
de Luchino Visconti (Itália/França/Reino Unido, 1971)

por Rodrigo de Oliveira

A vida depois da morte

Da novela original de Thomas Mann: “Para que qualquer produto intelectual de peso possa surtir de imediato um efeito amplo e profundo, é preciso que haja uma afinidade secreta, uma coincidência entre o destino pessoal de seu autor e o destino anônimo de sua geração”. Saído da experiência pública de sua versão cinematográfica para Morte em Veneza, Luchino Visconti gozou de tudo, menos dessa afinidade. A urgência do relato crítico, o imediatismo da recepção e, sobretudo, a sombra do maior escritor do século XX fizeram de seu projeto um objeto empalidecido pela miopia. A primeira, é claro, daquela geração que o testemunhou antes de nós, no começo dos anos 70, para quem Visconti não tinha o direito de transformar um escritor na literatura em um músico no cinema, um intelectual obcecado pela experiência da beleza aqui num dândi de forte acentuação pedófila, um anjo irreal num garoto de sorriso, olhos e corpo definidos, provocadores e desejosos como os de um garoto de programa precoce. A segunda miopia, muito mais consciente e programática do que a primeira, esta do próprio Visconti diante de Mann, que, não podendo ver tudo, escolheu um foco específico em detrimento de todos os outros. No meio do caminho, uma obra-prima que reage à outra com gentileza, onde respeito significa transformação.

Talvez fosse preciso esperar que Visconti seguisse adiante em sua carreira com Ludwig (1972) e, sobretudo, com Violência e Paixão (1974), para que se entendesse que era o destino do cineasta italiano, e não o legado do escritor alemão, que estava em jogo naquela Veneza recriada à golpes de figurino e Gustav Mahler. A apresentação dos protagonistas antitéticos de Morte em Veneza é fundamental neste sentido. É o primeiro jantar de Gustav Von Aschenbach no hotel praiano em que se hospeda, e poucos minutos depois de chegar ao salão de espera, ele encontra o jovem Tadzio, enfadado com aquela exuberância aristocrática e encerrada por tetos e paredes como se um laboratório fosse. A câmera faz movimentos laterais flutuantes, observa cada um dos grupos ali reunidos, e localiza o músico como parte natural daquele décor. Um zoom-in nos traz Aschenbach bem próximo, mas não há nada que os flashbacks de suas discussões filosóficas com um amigo, a lembrança da mulher e da filha morta, ou o fracasso de um concerto possam agregar à sua imagem acomodada em meio ao ambiente que parece repudiar tão fortemente. E é com a mesma estratégia do zoom-in que veremos Tadzio, mas o que temos desse movimento é o sentido oposto: está ali a diferença, ali o estranho. Se, para Thomas Mann, o signo da idealidade é o menino, para Luchino Visconti apenas ele é um dado do real – todo o resto é alucinação, imaginário, sombra móvel. “A realidade só nos distrai e degrada”, diz Aschenbach a certa altura, e a frase toma outro sentido se percebemos que é ele o personagem dessa farsa operística, o verdadeiro objeto de sonho num filme em que tudo parece absurdo e extraterreno – tudo menos o movimento banal mais repetido por Tadzio: caminhar, parar à distância, voltar o rosto para trás e sorrir. Nada mais mundano.

O músico de Dirk Bogarde aqui é, como o professor de Burt Lancaster em Violência e Paixão, um observador da vida – mas não um ser vivo ele mesmo. Ao contar a história de um colecionador de quadros de família que vê a calma de seu apartamento/exílio ser interrompida pela chegada um jovem intempestivo, Visconti usaria a mesma estratégia dos interiores de Morte em Veneza: ambientes rigorosamente ocupados por livros, quadros, móveis, uma história de segunda mão. Nada disso pertence ao professor ou foi produzido por ele, mas tudo o que sabe do mundo depende do relato alheio, da pincelada alheia. Aschenbach representava o último passo antes deste abismo intelectual: além de produzir arte, ele também ganha o direito de respirar, ganha o exterior e a linha do horizonte que Visconti negaria a outro protagonista, três anos depois. Mas os destinos estão traçados antes que o tempo nos apresente alternativas para ele, e a morte, a violência e a paixão estarão loteados no espaço onde, talvez um dia, tenha havido de fato algum ar (em Veneza há o vento mediterrâneo de verão envenenado por uma peste mortal).

É uma história de queda, como são todas as de Visconti. Relator e objeto da decadência de uma consciência de nobreza européia que faliu, o cineasta italiano nunca deixa de abraçá-la – e aqui, talvez, tenha encontrado a sintonia mais fina com Mann. É uma história de dor, mas a dor é tão precária como qualquer outro sentimento. Restava a Morte em Veneza mascarar-se de juventude, como faz Aschenbach no fim de sua vida, temerário de que a velhice fosse mesmo a impureza mais impura do mundo, única maneira de alcançar seu objeto de desejo – mas não é isso que acontece. Tadzio escapa pelos dedos de Aschenbach, porque a maquiagem só lhe acentua a irrealidade. Visconti, ao filmar um fantasma preso em seu purgatório bizarro, não esconde sua própria velhice. E assim, Morte em Veneza talvez seja seu filme mais realista, e Tadzio talvez seja seu verdadeiro alterego.

Junho de 2010

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