ensaios - especial moscou
No escuro
por Fábio Andrade

No primeiro plano de Moscou, um ator vestindo a camiseta do grupo Galpão segura a foto de uma praça, e conta à câmera sobre a primeira vez que passou férias em Moscou. Sua maior lembrança é a de que um cinema estava sendo destruído quando chegou à praça. Segundo ele, a evocação do cinema destruído era mais devastadora do que a da demolição de sua própria casa. É revelador que esse plano seja o prólogo, pois a destruição de um cinema é, de fato, a nascente de Moscou. Pois, a cada novo filme, Eduardo Coutinho mostra ter algo de Shiva: sempre que acreditamos ser possível enquadrar seu cinema dentro de limites que ele faz questão de definir com clareza (as famosas "regras do jogo"), essas paredes são derrubadas para que se possa construir um novo filme que, por sua vez, transformará a relação com toda a obra de Coutinho.

Babilônia 2000 voltava à favela como espaço, mas com intenções muito distantes das de Duas Semanas no Morro e Santo Forte; Edifício Master implodia a aparência de pureza, se aproximando da classe média construindo vazios com absoluta consciência (a alternância entre rostos e corredores, por exemplo); Peões deixava de buscar a multiplicidade no comum, e ia de encontro ao elo histórico que conectava vidas tão distintas, invertendo radicalmente seu eixo produtivo corrente; O Fim e o Princípio – título que sintetiza muito precisamente esse espírito inquieto – ia em busca de histórias não contadas, enquanto Jogo de Cena contava as mesmas histórias diversas vezes. Daí a suposta reinvenção de Jogo de Cena ser tão furada: se há uma constante no cinema de Eduardo Coutinho, é que a cada novo filme somos motivados a repensar todos os anteriores. Se suas conversas buscam o irredutível, é assim que Coutinho se porta em sua própria carreira: ele não se deixa pegar, e escrever sobre seus filmes é balbuciar um pensamento condenado à insuficiência. Não é surpresa nenhuma então que, quando o foco de seu olhar começa a parecer decodificável, venha Moscou para derrubar quase tudo que acreditávamos saber sobre ele.

Eduardo Coutinho – cineasta das regras, bastião da transparência, metódico dos planos médios, zelador da palavra – chega a Moscou sem bagagem alguma. De comum a todos os seus outros filmes, uma atitude realizadora: ser fiel à honestidade de um encontro. Mas não conhecemos Moscou (com e sem itálico), e por isso não conseguiremos interpretar nada plenamente. O que conhecemos são idéias de Moscou; uma interpretação, uma lembrança, um sonho, um verso – sentidos produzidos à distância, mas que se tornam mais ricos justamente por serem infinitamente mediados. Cada um tem sua própria Moscou. A câmera se entrega à zoom e às passagens de foco que tentam apreender um sentido que sempre nos escapa. A voz em off de Coutinho, sempre tão seca em seus filmes anteriores, aqui vibra com o reverb que pode tanto evocar o teatro que vemos em cena, quanto uma certa onipotência divina. Há uma certeza concreta, porém: sua voz reverbera, e essa reverberação aponta sempre a algo exterior à semântica das palavras. O sentido que esse efeito produz é imprecisável, mas não se contorna a sensação de que um sentido muito forte está sendo produzido.

O ponto de partida é um texto de Chekhov, interpretado por atores que são dirigidos por um outro realizador (Enrique Diaz). Não teremos uma encenação completa de As Três Irmãs, e Coutinho avisa isso logo no início do filme. O que temos são cenas, pequenos fragmentos de dramaturgia, mas de uma dramaturgia que chama sempre atenção para sua rarefação de sentidos. Não é o making of de uma peça teatral, pois Coutinho não se interessa pela produção de sentidos em si, mas sim pelos sentidos já produzidos – e esses sentidos são apenas parcialmente apreensíveis. Os trechos dos laboratórios promovidos por Enrique Diaz para a construção das personagens são raros, e não esclarecem coisa alguma: desde o roubo das memórias alheias na mesa de leitura, às fotos pregadas às roupas dos atores, o que temos são signos abismáticos que apontam para uma construção que não compreendemos totalmente. O sentido é produzido a partir de algo que também está fora do filme, e é inútil tentar mapeá-los, pois nunca conheceremos a motivação do outro. Por que sair da Rússia e chegar em Divinópolis? Ou ofertar rolos de fita crepe como presente? As motivações são o extracampo, e o que sobra é o signo pronto, polissêmico, indecifrável, mas uno por ser revelado em seu mistério – algo que aproxima Moscou tanto de João César Monteiro (A Bacia de J.W., principalmente), quanto de Straub e Huillet.

Pois, o que é Moscou? É uma cidade que nunca vemos, mas também um sonho, um desejo, uma lembrança, uma porta riscada em uma parede. A fuga para algo que está fora, e que permanecerá fora, pois é desconhecido. Mas, sobretudo, o ato de riscar com giz as linhas de uma porta em uma parede preta – preta e não branca, pois o preto é tanto a ausência quanto a plenitude absoluta da cor; como, em outro plano, os atores aparecem enquadrados em uma janela, falando todos ao mesmo tempo, levando a multiplicidade de sentidos a um nível de desorientação absoluta. Não exatamente uma porta, mas sim o signo "porta" – mínimo necessário para que as associações entrem em curso, como uma letra de um nome puxa um adjetivo, e uma memória puxa outra. Uma porta riscada atrás de uma barra – barra que permite que a porta se abra pra fora (mas não para dentro, como tradicionalmente são as portas das casas), mas que impede que se passe por ela. Uma foto, estática e cristalina, mas que, pelos olhos do ator, ganha sentidos infinitos: as três irmãs viram três irmãos, que logo viram Huguinho, Zezinho e Luizinho. Isso tudo em um plano fechado que, com um chicote de zoom, logo é arejado para seu entorno, em um escopo que reforça seus limites apontando sempre para fora.

Moscou parte de Chekhov, passa por Proust e chega a Joyce. Por isso, em um plano vemos os atores murmurarem a melodia de "Como Vai Você", canção imortal de Roberto Carlos, usando isqueiros de forma quase percussiva; para, logo depois, vermos atores cantando de fato a canção, no escuro, tendo seus rostos brevemente iluminados – mas nunca o suficiente para serem identificáveis – pelo riscar de fósforos (ou serão ainda os isqueiros?). A cena não só mostra o processo associativo da produção dos sentidos (a mesma canção, o mesmo fogo – mas em representações diferentes que parecem se encadear), como constrói a relação que o filme estabelece com o espectador. Pois, em Moscou, Coutinho nos leva para o escuro, nos dando apenas brevíssimos momentos de vidência aos quais podemos desesperadamente tentar nos agarrar. Mas podemos, também, nos entregarmos às infinitas possibilidades daquela escuridão – capaz de se amalgamar com a da própria sala de cinema. Em ambos os casos, o que se impõe é uma canção, um ritmo, uma melodia que, embora absolutamente familiar, evoca a cada ouvido um conjunto de sensações diferente, único, intransferível.

Abril de 2009

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