ensaios - especial moscou
Do inacabamento ao filme que não acabou por
Ilana Feldman Moscou
é um lugar que não existe. Moscou é o fora de quadro. Em Moscou, do cineasta
Eduardo Coutinho, talvez pela primeira vez em sua obra, não há mais fora: nem
enquanto espaço geográfico e social (delimitação que marca, de maneira evidente,
os últimos dez anos de sua produção), nem enquanto interdependência de sentidos
precisos entre planos (caso das relações propostas por Jogo de Cena). Em
Moscou, a cena abarca tudo, abraça a todos, intensifica e dissipa, tudo
e todos. Tudo é cena, tudo é filme e não há nada que pareça vir de fora dos jogos
de cena propostos pelo filme: atores lendo o texto no camarim e nas adjacências
do palco-galpão; ruídos de montagem de cenários; ações e hesitações; memória dos
personagens e imaginação dos atores; trabalho e hora do lanche; ensaios de fragmentos
da peça e ensaios do ensaio.
Nos arranjos que vão
se formando, todas as cenas, como cacos coloridos de um mesmo caleidoscópio (o
texto de Tchekov de que parte Coutinho), são dispostas soltas e unidas, isoladas
e solidárias, instáveis e equilibradas, sem nunca chegarem a formar uma imagem
matricial (a íntegra da peça “As três irmãs”) estável e unificada. Nesse método
que se desenha, “metodicamente sem método” e fadado ao “despropósito”, como já
definira Adorno a respeito das transitoriedades, contingências e inutilezas que
marcam a opção pelo ensaísmo, há vários níveis de ensaio, que colocam as cenas
e as difusas relações entre elas em abismo, em um moto-contínuo de camadas e mais
camadas de sentidos que se sobrepõem, em que nunca se chega a uma montagem integral
da peça. Os
atores, do grupo mineiro Galpão, dirigidos aqui pelo diretor teatral Enrique Diaz,
têm três semanas para ensaiar excertos, fragmentos e “esboços não acabados e vacilantes”
(citando uma bela expressão de Clarice Lispector) da peça de Tchekov. Na “documentação”
desse processo, Coutinho rompe qualquer ligação com o referente, a ponto de o
processo “real” ser completamente enredado pelo texto ficcional. Ou seja, aquilo
que em um filme mais tradicional seria da ordem do “bastidor” (deslocado da cena),
em Moscou é parte fundamental da ficção – e talvez a mais radiante, como
o momento de aproximação entre os amantes, durante um “intervalo” do ensaio e
na hora do lanche, ou o momento em que as três irmãs conversam no camarim. Tudo
então passa a ser indeterminado, ambíguo, fugidio e esquivo, e a indiscernibilidade
entre autenticidade e encenação, pessoa e personagem, singular e coletivo, público
e privado, marcas de Jogo de Cena, é radicalmente ultrapassada em favor
da inquieta e instável plenitude da ficção.
Em Moscou, não é mais
preciso destilar a suspeita que recai sobre a imagem documental: está claro, desde
a primeira seqüência do filme (em que um dos atores/personagens, em depoimento
para a câmera, exibe uma foto “de Moscou” e nos fala de um cinema, perto de “sua
casa”, que fora demolido), que todos os ruídos entre vida a arte, entre ator e
personagem, devem ser ultrapassados em favor das “potências do falso”, ainda que
algumas vezes essas potências sejam deliberadamente rarefeitas pela montagem do
filme. A montagem, trabalhando não na concentração, mas na expansão e dispersão
narrativas, realiza o caráter inacabado de Moscou – tão defendido por Coutinho,
ao mesmo tempo em que organiza o inacabamento do filme.
Operando
nas zonas opacas entre atores e personagens, e desfazendo qualquer fronteira em
que os dualismos socrático-platônicos nos fizeram acreditar, todo o filme é atravessado
por ambigüidades: Andrei, com o violino em punho, ouve a música, que supostamente
deveria executar, em um aparelho de som; em outro momento, um mesmo personagem
é interpretado por dois atores, em uma espécie de duplicação e contágio entre
corpos, que deixam de ser indivíduos para serem dividuais, se tornando veículos
da fala; já em meio ao lanche da tarde, Irina, constrangida, diz sussurrando a
seu colega de cena, consagrando a ambigüidade absoluta: “não fala assim que eu
tenho vontade de rir...”; novamente Andrei, filho desgarrado e promessa fracassada,
em uma reunião coletiva entre os atores para compartilhamento e apropriações,
de memórias próprias e alheias, revela que quer resgatar sua relação perdida com
a família; nesse mesmo momento, Olga, irmã mais velha das três, desejosa de ir
a Moscou, confessa ter cada vez mais medo de viajar e depois conta que, quando
criança e morando em uma casa cheia de irmãos, não conseguia ter nada que fosse
seu, nem mesmo uma caixa de bombons: “a gente não conseguia ter nada nosso, ter
intimidade”.
Com essa frase reveladora emergindo ainda na
primeira metade do filme, Coutinho e Enrique Diaz parecem ganhar de presente de
sua atriz e personagem certo princípio de Moscou: ao compartilhar memórias
com os atores e colegas de trabalho, ao imaginar memórias para os personagens
da ficção e ao fundir as próprias memórias (dos atores) às deles (personagens),
não haveria intimidade possível, nem garantia de qualquer lastro de “verdade”.
Por isso, pouco importa de quem são as memórias: a propriedade das biografias
é socializada, assim como a própria “autoria” e hierarquia entre as imagens a
que assistimos (de Coutinho ou de Enrique Diaz?) é dissolvida. Querendo Coutinho
ou não, Moscou é mesmo um filme comunista – e talvez o teatro, o espaço
da cena, seja o único lugar em que a utopia é possível. Dizer
então que em Moscou a cena é totalizante, e que nada escapa a ela, não
significa dizer que se trata de uma representação, estável e assegurada, de mundo.
Em Moscou, a cena, enquanto drama (cuja referência de estabilidade é o
drama burguês de que falava Diderot) é pura desestabilização. Longe do “risco
do real” colocado pelo mundo, e intensamente pleiteado pelo crítico Jean-Louis
Comolli, Coutinho coloca este mundo sob o risco da ficção. Aprofunda a investigação
humana e formal sobre a linguagem (retomando o fio da ficção do início de sua
carreira), ao mesmo tempo em que depura, levando ainda mais longe, seus métodos
e procedimentos reflexivos, cujo caminho já havia sido semeado em Jogo de Cena,
divisor de águas em sua trajetória e um dos mais importantes filmes já realizados
no país. Se,
portanto, parece não haver um fora em Moscou, uma dimensão de exterioridade
da cena e das relações entre elas, talvez, o único personagem realmente de fora
seja o narrador-intruso, o próprio Coutinho, deduzimos (pois sua voz off,
solene e quase profética, nos é dada a ouvir ao final), estrangeiro ao espaço
da cena e estrangeiro a si mesmo, já que não se reconhece enquanto imagem – lembremos
da fundamental coincidência entre câmera, narrador-intruso e espectador a adentrar,
no início do filme e em um plano subjetivo, o espaço “doméstico” das três irmãs.
Cabe esclarecer que evocar Coutinho, o narrador de fora, não significa pensar
naquela figura de cabelos brancos, sentada à mesa, logo nas primeiras seqüências,
ao lado do diretor Enrique Diaz e dos atores do grupo Galpão. Aquele Coutinho
não exerce nenhuma função dramática, não implica nenhuma tensão interna para as
cenas que vêm a seguir. Ali, sua figura é meramente explicativa e esclarecedora:
revela os parâmetros temporais e formais que orientarão as filmagens, enquanto,
logo depois, é chamado de “chefe” por Enrique Diaz. “Chefe” ou, mais apropriadamente,
demiurgo da experimentação que acompanharemos a partir de então – mas, a cena
já começou.
Seguindo então a lógica de um narrador-espectador de fora,
ora ausente, ora intruso, Coutinho, o narrador, é Moscou. Nós somos Moscou. E
Moscou, o filme, parece existir autonomamente, para sempre. Não precisa
de Coutinho, não precisa de nós. Esse efeito de autonomia fílmica constitui sua
beleza e seu perigo: por um lado, temos o aprofundamento e a depuração da linguagem,
em um caminho cada vez mais voltado sobre si, para dentro; por outro, esse aprofundamento
e essa depuração formal parecem independer de um olhar exterior – o nosso. Talvez
porque, ao tornar difusas as instâncias narrativas, assim como a quem pertenceriam
aquelas imagens (ao diretor teatral Enrique Diaz? Ao cineasta Coutinho?), Moscou
não cristalize um ponto de vista, com o qual poderíamos nos relacionar de uma
maneira estável.
Essa instabilidade, condição da sedução
e dos ardis de Moscou, instaura uma dimensão a um só tempo erótica e religiosa
que o filme vai adquirindo, entre claros e escuros, ocultamentos e revelações,
esquivas e irrupções, solidão e comunhão. Diferentemente de Jogo de Cena,
em que a vida explodia, em Moscou ela é expansiva e intensiva, dispersa
e fecunda, se ramificando e escapando, permanentemente. Alguns momentos, como
o escuro esporadicamente iluminado por chamas de fósforos, em que um casal de
atores entoa “Como vai você”, ou quando uma atriz desenha, com giz branco na parede
negra, uma porta (que não sabemos se é uma possibilidade de saída para Moscou
ou se é, simultaneamente, a porta de uma prisão), parecem flutuar para além de
nós: como imagens do passado (o filme já visto), e imagens do presente (o filme
que não acabou). Abril de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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