ensaios - balanços dos festivais
Retaguarda da vanguarda Ou
quando e porque defender uma postura de cinema por
Francis Vogner dos Reis Se este texto visa
ser extensão de uma “produção crítica” – que mereça ser chamada assim – é preciso,
antes de tudo, fazer duas afirmações. Primeira: não há crítica sem tomada de posturas
que vão, desde defender projetos estéticos (cineastas e uma noção mínima de História
do Cinema) até se insurgir contra valores estéticos frágeis, decadentes e/ou modistas.
Segunda: é preciso se colocar em pauta os modos de pensar a tal produção contemporânea,
as ferramentas de análise, a glorificação de procedimentos recorrentes e a noção
de que a atualidade se identifica com o que supostamente é “novo” e “saído do
forno”.
Mas, o que isso teria a ver com a 32a
Mostra Internacional de Cinema de São Paulo? Tudo, levando-se em conta este esforço
de pensar a Mostra de 2008, já que muitos dos problemas que testemunhamos e experimentamos
na relação com o cinema contemporâneo durante o ano são metabolizados durante
o Festival do Rio e a Mostra de São Paulo. Assim, convém nos perguntarmos qual
cinema (ou quais cinemas) a Mostra nos apresenta e o que fazemos quanto a isso.
Problema este muito sério, porque implica a produção atual (visível e invisível)
e o modo como organizamos o presente a partir disso, onde importam não só os filmes,
mas a relação com estes filmes. Revelação de quê? Existe
da parte da organização da Mostra (e o que é comprado pela mídia, desde a mais
picareta até a que supostamente é a mais séria) essa falácia de “revelação de
um panorama mundial”, como se este existisse independentemente de um olhar que
o organizasse. Ai cabe o papel vigilante de nós, críticos, que não temos a função
só de emitir impressões, analisar filmes e configurar tendências, mas de estabelecer
uma postura crítica com relação a tudo isso. Se também cabe a nós (re)organizarmos
a História do Cinema, tanto a partir do presente quanto na revisão do passado,
é preciso que se coloque em crise essa tal “vitrine” do cinema contemporâneo. Portanto,
se a Mostra este ano se confirmou como uma das mais fracas dos últimos tempos,
não é porque tivemos filmes piores do que os de outros anos. É que a Mostra se
demonstrou, mais do que nunca, bastante esgotada em seu olhar para o cinema que
é feito hoje – o que implica, necessariamente, em um olhar para a História do
Cinema. Além de resvalar na pura irrelevância histórica (com a retrospectiva Hugh
Hudson), é pescaria com rede: uma compilação limitada e franqueada de Cannes,
Veneza e Berlim que não traz muitos filmes de autores expressivos que não tenham
participado previamente da seleção desses festivais. No que diz respeito à crítica,
mais especificamente às revistas eletrônicas brasileiras que têm o costume de
cobrir o evento, corremos o risco de ratificar essa não-visão de cinema contemporâneo
a partir de nosso vocabulário acessório, de nossas confortáveis e “inteligentes”
ferramentas conceituais, de nossa falta de desconfiança daquilo que nos é apresentado
e na crença de muitos de que a novidade (e a tempestade conceitual dessas novidades)
nos revela urgências a serem tratadas. É freqüente a repetição
de idéias, identificação de procedimentos – como se estes tivessem valor em si
mesmos -, retóricas que ocultam falta total de substância, além da típica administração
de termos, categorias e clichês analíticos (acadêmicos ou não). Essas coisas não
dizem respeito a pessoas ou a publicações em particular, mas sim a métodos corriqueiros
de análise e posicionamento dos quais lançamos mão vez ou outra nessas revistas.
O problema é que isso está se tornando, em muitos casos, uma pose, que é monolítica,
preguiçosa, fechada e que não dá conta da realidade dos filmes tal como ela se
apresenta. Ao acompanhar a cobertura da Mostra nas revistas eletrônicas, parece
que nos aplicamos à leitura dos textos de dois ou três críticos somente. Esse
choque entre o que temos efetivamente (os filmes), o que desejamos (a organização
de panorama mais abrangente e original), o que carecemos (um pensamento crítico
menos acomodado e institucionalizado) e uma concepção mais íntegra da História
do Cinema (o presente como processo dessa História), estabelece uma crise. Nada
tão novo ou catastrófico, mas um tanto desanimador. Tendo
toda essa situação em vista, se esse problema de paradigmas no “contemporâneo”
é um impasse bastante complicado para críticos e festivais, alguns cineastas são
mais criativos e espertos que a contingência histórica supõe. Nenhum outro cinema
do mundo carrega mais o peso de um passado e uma tradição – sejam eles o patrimônio
de uma cultura moderna de modo mais amplo ou do cinema especificamente – do que
a França. Se no cinema a idéia de moderno, na maior parte das vezes, foi identificado
com um luto – da arte, da linguagem –, essa idéia parece se metamorfosear em um
direito à solidão, que seria um direito irrevogável do cineasta perante (não sobre)
o mundo – e a França – contemporâneo: observar e agir sobre o seu tempo não significa
a busca de atualizar a percepção a partir do choque e do desafio sensorial lançado
ao espectador, mas a procura de documentar um mundo nem tão novo mais, e também
nem tão velho. Dessa tradição, tivemos três filmes que problematizam autenticamente
esse “legado” e de quebra toda uma compreensão ainda um tanto equivocada dos atuais
regimes da imagem (cinematográfica): A Vida Moderna, de Raymond Depardon,
A Fronteira da Alvorada, de Phillipe Garrel e Horas de Verão, de
Olivier Assayas. Vamos aos filmes, então, pois eles sempre são mais inteligentes. Depois
do luto, a solidão Se os dois primeiros filmes citados
têm um significado todo especial, inclusive por terem em sua integridade uma resistência
crítica à ingenuidade estética de seus contemporâneos, o filme de Assayas é uma
grata surpresa, pois é uma resposta indireta aos seus últimos filmes (sobretudo
Boarding Gate, um esgotamento brutal de seu repertório), que se esbaldavam
nas articulações e clichês dos fluxos do cinema contemporâneo, ora com talento,
ora com escassez de criatividade. O que é bom em se tratando de Assayas, que já
representou o que havia de mais arrojado no cinema francês, é que ele é um cineasta-teórico.
Portanto (mas não só por isso), parece ter a capacidade de escapar da imobilidade
representada pelo estilo e por certa concepção de autoria, a qual inclusive ela
já discorreu quando crítico da Cahiers du Cinemá. Se
Horas de Verão tem uma estrutura e um processo que não são muito diferentes
dos seus filmes de modo geral, o que ele articula dentro disso dá um relevo especial
ao que coloca em cena. Temos um Assayas menos histérico, que prefere tratar da
complexidade do rosto e da inconstância de seus personagens, do que da plasticidade
de suas efígies de demonlover, Boarding Gate e de seus curtas nos
filmes de episódio que participou (Cada um com seu Cinema e Paris, Te
Amo). Se nesses filmes (além de Clean) é predominante esse entusiasmo
pelo novo, pela tortuosidade do híbrido, pelo imaterial tecnológico e pelo transitório,
em Horas de Verão, a serenidade dá o tom. Se há o transitório, ele não
apaga ou relativiza a verdade do tempo. O entusiasmo pela atualidade dá lugar
a uma reflexão sobre o valor que o tempo dá às coisas. Aqui, o relativo tem mais
a ver com a disparidade dos sentimentos do que uma estratégia para nivelar os
conflitos, como, mais uma vez, era a tônica de Boarding Gate. O presente,
o lugar isolado em que vive a maior parte dos personagens dos últimos filmes de
Assayas, aqui é famigerado, urgente, descaracterizado. O passado é só memória
e museu.
O filme acompanha o doloroso processo de venda
e doação dos bens da família após a morte da matriarca que os conservava e guardava.
O filho mais velho (como a hierarquia supõe, o “guardião da tradição”), único
entre os três que mora na França, é quem se incumbe de colocar tudo à venda. A
simplicidade no trato das relações entre pessoas e objetos é uma procura pelo
essencial que o cineasta havia perdido há um tempo, mesmo que, vez ou outra, suas
elipses (como as que naufragaram O Silêncio de Lorna, dos irmãos Dardenne)
sejam uma facilidade que escapa às passagens de uma unidade dramática a outra,
mas nada que comprometa o cuidado com que dá corpo a um filme. O diretor não só
olha para uma geração perdida (a sua), mas delega à geração mais jovem a missão
de ressignificar a herança – toda herança clássica e moderna da França – e equacioná-la
com a experiência do novo, que aqui, ele prefere não fazer propaganda. Mesmo Olivier
Assayas não tendo feito um filme sensacional, fez um trabalho admirável, lúcido
e, sem abrir mão de sua identidade como cineasta, olha para hoje com desconfiança
e sobriedade. Isso é uma mudança e tanto. Enquanto
Assayas termina seu filme olhando para a frente, Depardon, em A Vida Moderna,
termina o seu olhando para trás. Seu filme se ocupa dos camponeses, mais precisamente
dos que subsistem há gerações por meio da agricultura e pecuária familiar. Por
um lado temos o clichê do camponês francês (secular, rústico e tradicionalista),
do qual Depardon foge porque parece ter intimidade o suficiente para não repisar
banalidades, uma tentação para os cineastas que tem o gênero documentário como
princípio. Por outro lado, temos um contexto em que esses personagens estão completamente
deslocados. Os mais velhos (como os irmãos que encabeçam um clã que sobrevive
há séculos em uma fazenda) tentam a todo custo manter vivo um cotidiano e os seus
costumes, porque sabem que são os últimos a se dedicar a essa prática e com eles
morrerá esse tipo de vida. Os mais novos se ressentem dessa herança, dessa tradição:
a eles nada foi deixado, e não ser um estilo e um meio de vida antiquados, modestos
e que não responde aos anseios da vida moderna.
Depardon
entitulou o filme A Vida Moderna (e não algo como O Fim de uma Era ou Os
Camponeses Modernos) porque para ele a vida moderna não prima exatamente pela
novidade, mas pela memória e pela (in)capacidade de transição. É um cineasta
que tem um sentimento muito específico e pessoal com o que filma, e este olhar
consiste em capturar o ritmo e a sensibilidade desse universo. Se ele filma um
homem assistindo a uma missa pela televisão ele não o faz com estardalhaço, supondo
que isso é um dado irredutível de uma nova experiência e percepção do mundo. Ele
não crê que um camponês seja “assim” e que veja e vivencie as coisas “desse jeito”.
O diretor não tenta legitimar sua estética por meio de uma justificativa de atualidade
ou de clichês paranóicos do documentário. Ele não se aproxima daqueles camponeses
com a benevolência de uma carpideira que vai acompanhar um velório – ou um enterro
-, nem constrói um manifesto do fim de uma era, assim como sua intenção também
não é a de desmistificar a vida no campo atualmente, apesar de ter ai uma insuspeita
tristeza. Sua função é fazer vazar aquele mundo, portanto sabe que diagnósticos,
estratégias de constrangimento, falsa consciência do “potencial ficcional do documentário”,
não colam. Depardon acredita no tempo como gestação. Não
é a História com um todo que está jogo, mas o cotidiano como manifestação sensível
dessa História. A vida, portanto. Filmar um documentário em película, respeitar
as curvas, e por isso mesmo o “tempo e o espaço” das estradas provincianas, levar
anos para capturar períodos diferentes da vida dos personagens é aparentemente
muito antiquado, vagaroso. Não envereda pelo cinismo e esperteza sobre o material.
Realidade sem suspeita, até mesmo porque ficar questionando o seu estatuto não
é questão, o que importa é uma verdade possível, desde que ela não venha acompanhada
de um protocolo. Já o filme de Garrel tem o nome tão emblemático
como o de Depardon: Fronteira da Alvorada. É também tão atual e, ao mesmo
tempo, tão fora de moda quanto A Vida Moderna. Importante para Philippe
Garrel é que para ele é possível entender algumas coisas, algumas experiências,
somente com um olhar que tenha uma referência no que é antigo. Não é velho, envelhecido
ou retrô, não há demanda por tratar de questões velhas de maneira velha:
aqui tudo se passa em 2007 e sabemos disso por meio da lápide de um cemitério.
Mas até que ponto este “antigo” é um gesto estético lúcido ou até que ponto é
um maneirismo decadente? É
bom lembrar que Philippe Garrel não é Chistophe Honoré, portanto, a sua chave
de compreensão não é a colagem ou a piscadinha ligeira para o espectador entender
o link referencial. Quando Garrel se utiliza o que é velho e fora de uso,
tanto no que diz respeito aos seus objetos de cena (as máquinas fotográficas Roleiflex
e Polaroid, por exemplo) quanto a recursos formais, não é para fazer tipo, mas
sim porque aquele drama só pode ser visto – e talvez fazer sentido – por meio
de um olhar que tenha uma potência de verdade a partir do que escapa a referencia
de uma realidade atual facilmente reconhecível. A coisa não é muito simples. O
romantismo do diretor está sempre regredindo no tempo (um exemplo são os sonhos,
com figurinos e locações medievais), como se as ferramentas – dramáticas, pictóricas,
musicais – que ele buscasse para tratar as paixões de seus personagens só fossem
possíveis em um tempo pregresso em que sua heroína é internada em um sanatório
por amor, é tratada a base de eletrochoques e seu herói tem em seu amor uma pulsão
para além da morte.
Para dar conta disso tudo, o mundo não
pode ser um lugar em que as coisas são relativas, múltiplas, transitórias, soltas,
cautelosas, efêmeras, por isso é importante essa dualidade, essas linhas de força
absolutas. Sim, em seus filmes o tempo passa, e as relações se transformam, mas
isso é fatal. A fatalidade entre o amor e o tempo é um dos temas de seu cinema.
Philippe Garrel vê a contemporaneidade como uma época que perdeu a sensibilidade
de ver certas experiências da maneira como elas precisam ser vistas. Ele busca
uma radicalidade originária, por isso tudo é dual: vida e morte, liberdade e aprisionamento,
lucidez e loucura, preto e branco, sonho e realidade. Mas isso tudo não é uma
visão dialética do mundo. Há um desencontro entre as partes. O branco e preto
da fotografia sempre estão em desequilíbrio, ou mesmo as composições são permeadas
pelas variações de cinza. Essa investigação estética empenhada pelo cineasta não
é uma procura por procedimentos capazes de dar conta da complexidade do mundo
atual, mas sim, por uma potência da imagem capaz de produzir um impacto único.
Uma oposição livre, insubordinada (mas não indiferente) a qualquer regime de imagens.
A Fronteira da Alvorada é um dos filmes contemporâneos que nos lembra dessa
potência que é a vocação do cinema em qualquer época. E essa a busca é vital para
quem acredita no cinema. Novembro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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