Mother, de Bong Joon-ho (Coréia do Sul, 2009)
por Filipe Furtado

O equilíbrio do desequilíbrio

Parte do fascínio de Mother vem da maneira como Bong Joon-ho sustenta duas tendências muito distintas. De um lado, Mother nos relembra que poucos cineastas hoje se dedicam com tanta precisão ao ato de contar histórias quanto Bong. Mas, ao mesmo tempo, e muito mais que em Memories of Murder e O Hospedeiro, Mother se entrega a todos os excessos de sua narrativa sobre uma mãe disposta a tudo para provar a inocência do filho, se deixando levar para onde a demência de sua personagem e trama seguem. É quase como se Bong Jong-ho se revelasse um Shohei Imamura classicista. Um sem número de excessos, digressões e tons diversos unidos sobre uma crença na narrativa que esperamos de alguém como John Carpenter.

Poderia ser contra-producente e alguns podem até considerar que Mother soe calculado e controlado demais, mas me parece que sua força reside justamente em, mais do que um filme que se entrega a todas as emoções absurdas da sua protagonista, ser um filme em que isto ocorre sobre uma superfície formalmente bem mais acessível do que tal descrição faria esperar. Em Memories of Murder e O Hospedeiro, Bong Jong-ho já revelara que grande parte do apelo populista do seu cinema vem não só da sua facilidade com narrativa, mas sobretudo do seu desejo de abarcar tudo. O cinema de Bong é sempre um cinema de adições: todo gênero e tom que couber em suas histórias encontrará seu lugar, por mais incomum que a principio esta adição seja. Esta idéia democrática de que toda situação encontrará seu lugar no filme é ainda mais presente em Mother, em seu balanço delicado de tons. Ainda mais que em O Hospedeiro, Bong se revela aqui um mestre de controle de tom, onde a mais grosseira cena de humor entorno do filho mentalmente limitado, os momentos mais tensos de thriller ligados a investigação da mãe ou os excessos do melodrama familiar fluem uns sobre os outros com grande naturalidade.

Há dois grandes efeitos incoerentes deste equilíbrio no desequilíbrio proposto por Mother: o mais óbvio é que o filme torna acessível uma série de elementos incomuns (não surpreende ser o mais improvável filme com distribuição garantida exibido nos festivais brasileiros neste ano); torna normal o que seria aberrante em outro contexto. Mais interessante, porém, é pensar como Mother termina se revelando uma narrativa de contágio com a demência que, à primeira vista se limita ao filho, mas aos poucos vai tomando conta da protagonista desesperada em provar a inocência deste filho, e principalmente vai tomando conta do próprio filme. Nas suas últimas imagens, Mother apresente um cenário dos mais tradicionais e aprazíveis: passada a crise (resolvida não na narrativa principal, mas às margens reforçando a paixão de Bong pela digressão), o filho leva a mãe até a rodoviária para merecidas férias. Só que, a esta altura, o contágio foi completo e a superfície rotineira já não contém o fato de que Mother há muito se entregou às pulsões da sua protagonista, ultrapassou um ponto de não-retorno. Até por isso, suas imagens finais já não podem recapturar o tom rotineiro das primeiras seqüências. O desequilíbrio muito deixa de ser uma gag e se torna o estado constante do filme, restando a sua personagem título somente aceitá-lo. 

Outubro de 2009

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