O Mundo em Duas Voltas,
de David Schürmann (Brasil, 2007)
por Leonardo Mecchi

As voltas que o mundo dá

O Mundo em Duas Voltas, documentário sobre as aventuras da família Schürmann, é uma obra estruturada sobre um tripé narrativo: três filmes diferentes que se entrelaçam, três dispositivos distintos que buscam, cada qual à sua maneira, uma aproximação diferente e maior com o público.

Em primeiro plano, temos o diário de bordo de uma família em sua viagem ao redor do mundo, refazendo o trajeto do navegador português Fernão de Magalhães em sua busca por um estreito que o levasse às Índias e suas valiosas especiarias. A história dessa expedição já é mais do que conhecida (tendo sido acompanhada “ao vivo” pelo Fantástico e se desdobrado em livros de bastante sucesso), e talvez por isso mesmo seja aqui que o filme mostra mais claramente sua principal preocupação: ter um diálogo com um público mais amplo do que o normalmente reservado ao documentário.

A busca por essa aproximação se dá, antes de tudo, através da utilização de uma linguagem mais próxima da ficção. Isso fica claro já na primeira seqüência do filme, onde uma tempestade em alto-mar é registrada com uma câmera na mão colada aos personagens, uma montagem ágil e impactante, uma edição de som que nos coloca (literalmente) no olho do furacão – lembrando, com isso, o cinema de um Paul Greengrass (que, curiosamente, busca emular a “realidade” na ficção). Dessa forma, uma narrativa quase ficcional (não no sentido da veracidade dos relatos, mas dos dispositivos utilizados para relatá-los) vai sendo construída ao longo do filme, com direito a uma trilha sonora onipresente e aos mais variados plot points (o barco à deriva com a filha de cinco anos, o ataque de piratas em pleno Oceano Pacífico, a própria tempestade que abre o filme) e surpresas dramáticas (a história da filha caçula, da qual só tomamos conhecimento quando já transcorrida mais da metade do filme).

O problema desse relato é seu caráter quase institucional, resultado talvez de seu olhar “de dentro” (o filme foi dirigido e fotografado por David Schürmann, o segundo filho da família, e é narrado pelos patriarcas Vilfredo e Heloísa – além de co-produzido por David e Vilfredo). É inevitável a sensação de estarmos assistindo a um retrato parcial, uma exaltação irrestrita da coragem e singularidade daquela família. Por isso, não surpreende que no único momento em que se sugere a existência de conflitos e insatisfações entre os membros da família (inevitáveis quando se confina um grupo de pessoas num espaço de pouco mais de 40 m² durante mais de dois anos), a dificuldade seja logo expurgada do filme em nome de um retrato de convívio pacífico e harmonioso.

Paralelamente a esse diário de viagem da família Schürmann, temos um outro filme, uma espécie de docudrama da própria expedição de Magalhães, recriada através de ilustrações animadas. Como numa história em quadrinhos, vamos acompanhando cada etapa da empreitada do navegador português conforme os brasileiros vão retraçando seus passos. Aqui, o filme não consegue fugir de um certo didatismo de ementa escolar, com uma atenção (e extensão) aos fatos históricos excessiva diante da suposta necessidade de uma contextualização da viagem dos Schürmann.

Por fim, há também uma faceta do filme que o aproxima de um travelogue, gênero nascido ainda no primeiro cinema, onde um cineasta-viajante exibia e narrava para o público os locais e povos exóticos que encontrava em suas explorações. Essa proximidade se dá através de seqüências como as que expõem as experiências “antropológicas” dos Schürmann, a visita às esculturas gigantes da Ilha de Páscoa, à Polinésia e seus habitantes tatuados, a surpresa diante da cerimônia de crucificação real nas Filipinas, o encontro com os nativos da Ilha de Bali. Aqui, temos um olhar próximo ao de especiais do Fantástico ou de um Globo Repórter, com a câmera preocupada em captar, em belos planos observacionais, o exótico, a natureza, o diferente – como quem recolhe souvenires de viagem.

Temos, ao final, um documentário que prende o espectador pelo que há, sem dúvida nenhuma, de fascinante em uma aventura como esta, mas que, apesar do evidente cuidado em se pensar o filme como objeto audiovisual (visível no desenho do roteiro, na montagem e produção cuidadosas, na própria construção da estrutura aqui relatada), acaba por cair em armadilhas que limitam seu potencial e suas ambições.


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