ensaios - in loco Uma
tragédia na Alemanha por Julio Bezerra
Através
de seu protagonista, interpretado magistralmente por Emil Jennings, A Última
Gargalhada narra uma descida em linha reta, que dispensa maiores oscilações.
Murnau sempre gostou de tragédias – e esta é uma tragédia alemã, onde o uniforme
é sagrado. Ele valoriza a presença do cenário e a figura humana, que se desmembra
em uma dança de gestos e olhares e se contorce nas nuances desse cenário. É essa
tensão que mais lhe interessa. É curioso, por exemplo, observar como os personagens
secundários parecem desprovidos de brilho. Só existem quando o protagonista está
em cena. Os empregados do hotel são personagens anônimos, peças para melhor compor
o porteiro. Os familiares são imprecisos, mais parecem irradiações do protagonista.
E os vizinhos estão ali apenas para olhar o herói. Eles se põem nas janelas e
sacadas e sacodem os lençóis e as colchas apenas para acompanhar e sublinhar a
escovadela do sagrado uniforme.
Assim segue o filme:
objetos, décor e personagens têm papéis análogos. São todos elementos de
uma mesma sinfonia. Como dizia Deleuze, o expressionismo rompe com o princípio
de composição orgânica instaurado por Griffith, mas o faz de maneira diferente
da escola francesa. O que Murnau privilegia não é a clara mecânica do movimento,
mas sim um estado movediço onde mergulham todas as coisas. A vida não-orgânica
das coisas, este seria um dos princípios do expressionismo. Em diversos momentos
de A Última Gargalhada, confere-se ao inorgânico um sentido transcendental.
O movimento da porta giratória se torna um turbilhão de vida, onde entram e saem
os seres humanos. Filmado pela câmera, o botão caído do uniforme equivale a uma
espécie de degradação militar. Depois da festa, uma sala vazia, com janelas entreabertas,
cortinas esvoaçantes, e cadeiras viradas em desordem, sintetizam um desolado estado
de espírito, refletem os tormentos do protagonista. Em A Última Gargalhada,
as substâncias naturais e os produtos artificiais, os objetos decorativos,
as árvores, os personagens secundários não têm diferença. E
tudo caminha em direção a câmera. Tudo se arremessa para frente, circula, treme.
É fato que Murnau sempre gostou de esgotar as possibilidades de uma panorâmica,
de um travelling, de uma tomada em plongé. Mas em A Última Gargalhada
tudo está em movimento – em movimento entusiasmado, como dizia Lotte Eisner. O
êxito da primeira seqüência do filme, por exemplo, se deve ao manejo da câmera
de Karl Freund: através dos vidros do elevador que desce, somos apresentados ao
hall do hotel: percebemos de imediato a atmosfera particular que agita os visitantes
que entram e saem sob luzes cintilantes. Os contornos do cenário se quebram e
se refazem num ritmo que nos rouba o fôlego. A câmera mergulha em um fluxo dinâmico,
segue até a porta que gira e gira. Chove lá fora, e os automóveis passam e param.
A seqüência obedece a um crescendo constante, compassado numa sucessão rigorosamente
harmônica das cenas – tudo subordinado a uma medida exata do período de saturação
de cada tomada. O que se vê é um quadro pulsante de afluência em todos os cantos.
Murnau multiplica os ângulos das tomadas e embaralha os planos, toma uma direção
por outra através da montagem, até nos arrastar para o redemoinho. A
câmera põe a nu o estado do porteiro, detalha incansavelmente os seus dissabores.
É ela quem nos desvela impiedosamente a gola amarrotada de um lastimável avental
e desce aos poucos pelas pernas encolhidas do protagonista. Em seu uniforme, ele
é filmado de baixo para cima, ostentando orgulhosamente sua imponente barriga,
tal como um general; quando rebaixado, ao contrário, é tomado em plongé
nos lavatórios, esmagado pela decadência. Murnau invade todos os cantos, segue
seu personagem ao longo das paredes, lança-se com ele nos corredores do hotel.
Mas a câmera não se contenta em apenas seguir o protagonista, muito pelo contrário:
ela se desloca por entre os personagens. A câmera não se confunde com eles, mas
também não está distante ou de fora. Ela está com eles. É justamente o olho da
câmera, um ponto de vista anônimo de alguém não identificado entre os personagens.
Em A Última Gargalhada, Murnau fez da câmera o ponto de partida do drama.
Cinema aqui é drama pelo olhar. O cinema é o mundo que se
descortina à frente da câmera. Isso porque Murnau não se interessa por um real
objetivo, e sim pela realidade pró-fílmica, pela verdade do filme, pelo espaço
cênico que se constrói com a linguagem cinematográfica e no qual personagens,
décor e objetos estão mergulhados. A Última Gargalhada é dominado por uma
luz onde entra muito o artificial. Murnau busca uma luz dramatizada, vinda do
real, mas ela acaba se impondo sobre esse real, o deformando. O mesmo vale para
o espaço, que embora seja verossímil em todos os detalhes, parece sempre a serviço
da inocência com que os personagens o enxergam (o interior simétrico do hotel
em contraposição ao cortiço assimétrico onde vive o porteiro). Murnau é um expressionista
apaixonado pelo realismo. Neste
sentido, no duplo interesse de avaliar a carga realista e o valor expressivo do
cinema de Murnau, são extremamente curiosas as observações de Eric Rohmer. Para
o francês, o cinema do alemão é marcado por um domínio ligado ao pictórico. Mas
se a imagem em Murnau é suficientemente rica para se “elevar até à pintura”, não
é pelo fato de o cineasta ter reproduzido telas célebres ou por imitar o estilo
de alguns pintores, e sim por ter levado a cabo uma incessante busca plástica
em nome de uma representação limite da realidade. O cineasta alemão, nos diz Rohmer,
quer nos convencer da realidade daquilo que vemos, da sua plena realidade: “um
plano de Murnau não se apresenta como a revelação de alguma coisa, mas como um
campo aberto a essa revelação, fragmento de espaço vazio que o acontecimento irá
povoar, quer subitamente, quer pouco a pouco”.(1) De repente,
o primeiro e único intertítulo do filme: a história verdadeira deveria terminar
ali, mas o cineasta tem pena do porteiro e lhe concede ou outro (improvável) final.
Na seqüência que se segue, descobrimos que o personagem ficou rico. Ele retorna
ao hotel, agora como um cliente milionário. É um final de contos de fadas que
não quer terminar, como se Murnau quisesse contrapor uma certa leveza à ditadura
veloz da modernidade. Surpreendente, o epílogo já criou muita discórdia. Rico,
o personagem continua com os mesmos gestos e ações de quando era porteiro. Embora
o epílogo revele o amargor do personagem por perder o seu emprego, funciona também
numa chave de auto-paródia. Ainda assim, o tratamento que o gerente do hotel dispensa
ao protagonista não é injusto ou desonesto. E assim, A Última Gargalhada revelaria
a obsessão pelo poder – traindo de certa forma o tema da revolta contra a autoridade,
recorrente no expressionismo alemão como um todo. A discórdia se estende aos títulos
do filme. A Última Gargalhada (o brasileiro e o americano) enfatiza o epílogo,
enquanto O Último Homem (o alemão) sugere implicações mais trágicas,
toma o porteiro como uma espécie de relíquia de um tempo mais agradável, menos
veloz. Mas não importa. A narrativa de Murnau é suficientemente obliqua para encorajar
todo tipo de especulação e frustrar qualquer tentativa de explicação definitiva.
(1) Citado por Jacques Aumont em O cinema e a encenação.
Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2008. Página 155. Dezembro
de 2008
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