Minha Felicidade (My Joy),
de Sergei Loznitsa (Alemanha/Ucrânia/Rússia, 2010)

por Eduardo Valente

Nação como destino

Sergei Loznitsa é realizador com vários documentários no currículo (importante lembrar de Blockade, seu forte filme exibido no É Tudo Verdade, sobre o qual escrevi naquela ocasião), que estréia aqui na ficção. Pois o que impressiona mais nesse primeiro filme de Loznitsa é justamente sua capacidade de criar um universo próprio, que se certamente deve muito a diversos aspectos da história e da realidade russa (algo que se poderia esperar, vindo de sua atividade anterior), também deve igualmente à sua capacidade de transfigurar estas duas num imaginário que, desde as primeiras imagens de My Joy, afirma na tela sua capacidade de um respiro próprio da ficção.

Se este respiro tem um norte, este é o da violência, como deixa claro já o primeiríssimo plano (nos dois sentidos do termo) do filme, que mostra um cadáver sendo jogado numa máquina de produzir cimento. O interessante é como esta imagem parece querer nos dizer quase tudo que há para ser dito sobre o filme (a violência indiscriminada como um aspecto fundador daquilo que seria a nação russa), mas ao mesmo tempo não nos dá de fato a menor idéia de como será construído o filme que vem a seguir.Sim, porque talvez o que seja mais curioso notar no filme de Loznitsa é como, apesar da “moral” que haja por trás do seu filme ser praticamente monolítica (aquilo que um crítico resumiu muito bem no último Festival de Cannes como: “nenhum ato bondoso passará sem punição”), a forma como constrói sua narração é altamente sofisticada.

Existe por trás de tudo, afinal, um protagonista: o motorista de caminhão Georgy. Mas esse protagonista não será um só: da mesma forma que, sobre ele, não sabemos quase nada do passado (sua cena inicial saindo de casa é um primor de mistério e sugestão), ele também sofrerá mudanças absolutamente irreversíveis ao longo da trama. A maneira como encadeia essas mudanças, e como ao mesmo tempo as faz fluir, é o grande trunfo da narrativa do filme, pois acompanhamos com enorme empatia um personagem sobre o qual, num primeiro momento nada sabemos e que, depois, se torna (para dizer o mínimo) um tanto desagradável. No entanto, não estaria errado quem afirmasse que o verdadeiro protagonista do filme é mesmo um chamado “espírito russo”, do qual Loznitsa parece querer buscar, se não exatamente as origens, pelo menos o ponto de “não-retorno”.

Este ponto, para surpresa de quase ninguém, está na II Guerra Mundial, que acaba sendo o palco dos dois momentos em que a narrativa de Georgy dá uma pausa para olharmos para narrativas passadas de outros personagens (sendo que, um deles, é um flashback que parte de uma casa). Nos dois momentos, significativos dentro do discurso do filme exatamente porque externos ao trajeto do personagem central, emergem uma mesma crueldade e incapacidade de lidar com o mundo (e com o outro) por qualquer outra chave que não a da matança e do abuso de poder – os mesmos elementos que perseguem Georgy ao longo, literalmente, da sua estrada. Sobre essa estrada, que parece ser aquela que o transforma de homem em monstro fadado à escuridão (como no plano final), cabe perguntar se esta não sempre foi muito mais o destino incontornável do personagem do que sua agente modificadora.

Outubro de 2010

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