ensaios
Nana, de Valérie Massadian (França, 2011)
por
Raul Arthuso
O mundo como performance
É interessante quando se percebe que o que leva um realizador
a fazer um filme pode ser sua paixão em se deter especificamente
naquela pequena coisa que o interessa. No caso de Nana,
isso é quase literal. Pois se há uma narrativa no
filme, mínima no caso, ela existe para e por causa de Nana,
uma garotinha de quatro anos. A fábula em volta de Nana
interessa muito pouco e é, em certo sentido, bastante simplória.
A garotinha vive sozinha com sua mãe. Um dia, a mãe
desaparece e Nana tem de realizar as tarefas caseiras sozinha.
É nesse momento que Valérie Massadian cria o que
de mais interessante há no filme. Ela simplesmente liga
a câmera e filma a garota, experimentando deixá-la
solta pelo filme, espelhando o gesto da mãe da personagem.
Há, num certo sentido, o “risco do real” de
Comolli.
Não
à toa, nos créditos finais há um agradecimento
para Pedro Costa. Mesmo sem saber qual seu envolvimento real com
o filme, é perceptível sua influência, principalmente
no que tange ao procedimento de dar à personagem nome,
corpo e alma da atriz - noção que tanto aqui quanto
em Costa ganha outras implicações, na medida em
que a personagem só existe enquanto sua pertinência
àquela pessoa e (porque não?) vice-versa. Não
se trata apenas de emprestar o mesmo nome, mas sim da idéia
de que a personagem se manifesta na pessoa. Há uma cena
na qual Nana está lendo um livro (como sua mãe fazia
para ela, mas agora ela tem de lê-lo sozinha) e, em dado
momento, a garotinha resmunga que não precisa, pois ela
sabe ler. Pode-se concluir que a menina responde a um estímulo
da equipe. A questão é o quanto isso deixa evidente
um pertencimento da personagem à menina, na medida em que
essa fala, agora pertencente à personagem pois, captada
pela câmera, é fruto da espontaneidade de Nana, a
garota.
Como escreveu Luiz Soares Júnior sobre Pedro Costa "o plano é um índice radical de presente, de um manifestar-se aqui e agora, o espaço da crônica e do registro etnográfico/entomológico". Nesse sentido, Nana é uma crônica (ou ainda, um fragmento de vida) sobre essa garota para quem a câmera se volta. Há essa mesma idéia do plano citada por Júnior, na medida em que Massadian evita o corte, fazendo de cada cena um plano como no primeiro cinema, onde interessava a observação de um evento curto bastando em si mesmo, ou de um tipo de movimento, fosse ele uma multidão ou uma corrida ou um bebê fazendo sua refeição - e lembrar do curto filme dos Irmãos Lumière, Le Repas de Bébé, não parece desmedido.
Uma diferença crucial em relação a Pedro Costa - e é nisso que os projetos de cinema se mostram diferentes e os limites de onde cada um deles pode chegar são definidos - é que, enquanto Costa cria seus planos-eventos, onde o tempo é uma grandeza relacionada à percepção, almejando atingir uma interioridade que se mostra para o exterior, Massadian fica sempre no nível exterior, inerente ao ato de interessar-se pelas ações em si e não nas relações delas com a interioridade da personagem. Enquanto, em Costa, tudo se faz nas interrelações (câmera/objeto, interior/exterior, personagem/pessoa), em Nana o mundo é uma bela performance a ser captada. Mas ainda assim é só uma performance.
Outubro de 2011
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