in loco - cobertura dos festivais
Na Neblina (V Tumane), de Sergei Loznitsa (Alemanha/Holanda/Bielorússia/Rússia/Látvia, 2012)
por Raul Arthuso
Terra
de maldição
Algo que impressiona em Na Neblina é a destreza
do diretor bielorrusso Sergei Loznitsa em criar um universo tão
forte e particular, a ponto de parecer transitar por sua narrativa
não apenas o sentido imediato da ficção,
mas todo um conhecimento íntimo cultural do lugar onde
ela se desenrola. A ficção é como uma catarse
da literatura, do imaginário da Rússia – não
a nação, mas a terra, de onde é difícil
retirar essa matéria etérea. Na Neblina
cristaliza de maneira muito forte a capacidade de Loznitsa em
fazer as locações e a cenografia contarem tanto
(ou até mais) quanto o que se passa na encenação
em si – algo reforçado pela visão de seus
documentários.
Logo no primeiro plano, há uma caminhada não se
sabe até onde nem porque. A composição de
figurantes no fundo e bordas do quadro, os detalhes de figurino,
maquiagem do objeto principal da cena e o que se vê da locação
já nos permite inferir a situação. As noções
de "paisagem" e "retrato" (por sinal, títulos
de dois dos documentários de Loznitsa) são de vital
importância em Na Neblina. Pois, suas locações
“vivem” antes da chegada das personagens e sobrevivem
após sua passagem. É um filme do lugar, sua personalidade,
seus detalhes. Muito da força aqui vem de cada um desses
detalhes – o que, em uma possível associação,
coloca o filme como um filho direto da grande literatura russa
e seu andamento descritivo: os ambientes, as roupas e os detalhes
dos rostos movem a história em paralelo às personagens.
O ritmo de Na Neblina é muito próximo,
assim, ao de Minha Felicidade: Loznitsa esmiúça
cada minúcia das ações, organiza a cena a
partir da decupagem dos gestos, das reações e intenções
(curiosamente, em uma infinidade de planos sequência), realizando
um barroco-descritivo dos mais habilidosos. As personagens não
simplesmente colocam frutas numa sacola, mas colocam fruta por
fruta em uma sacola, colherada por colherada de comida no prato,
palavra por palavra em suas bocas.
É
talvez pela linearidade que esse andamento extremamente descritivo
das ações pressupõe que o todo da estrutura
narrativa de Na Neblina por vezes pareça travado.
Pois há esse impulso sempre do presente (o olhar para as
ações, as palavras, os gestos, os movimentos), porém
existe também um desejo por não interromper a história
em si, marcadamente contada por três flashbacks
de cada um dos três protagonistas, em que se encena uma
espécie de “como chegamos até aqui”.
Talvez a maior fraqueza do filme venha justamente daí:
Loznitsa parece desconfortável em articular o tempo elíptico
e a dimensão de casualidade das ações que
essas cenas dão a ver. Suas entradas e saídas são
um peso às suas presenças, que rejeitam a si mesmos
enquanto narrativa e incidência no presente. Isso porque
o acaso exerce um papel fundamental em Na Neblina –
algo já sensível em Minha Felicidade. Os
momentos mais importantes do filme estão ligados à
violência, e ela se faz numa série de encontros aleatórios
entre personagens com nenhuma ligação, exceto estarem
vagando pelo mesmo terreno de fria aridez.
O
pano de fundo é uma Segunda Guerra anti-heróica,
a quilômetros do Dia D. A ocupação nazista
assemelha-se a uma polícia corrupta e agressiva e sua identificação
enquanto "mal absoluto" passa ao largo do julgamento:
sua presença é apenas uma ocupação
passageira, como várias já ocorridas em Belarus
– em dado momento, um personagem inclusive se refere ao
tempo em que os russos ocuparam a região sem fazer distinção
de um ou de outro. Assim, a violência latente e gratuita
desse lugar ocupado tem parentesco direto com o infortúnio.
Por causa do papel da violência sem uma moral, presente
tanto em Minha Felicidade quanto em Na Neblina,
pelo estilo de câmera fundado no plano-sequência e
na steadycam, o esvaziamento narrativo (duvidoso, diga-se
de passagem) e sua colaboração com o fotógrafo
Oleg Mutu – personalidade importante na explosão
do realismo romeno recentemente no cinema internacional –,
Loznitsa foi tomado como um realista extremo, a exemplo dos romenos
Mingiu, Porumboiu e Puiu, que fazem um cinema cru e direto. Daí
é importante fazer uma distinção: Na
Neblina não é um filme de crueza de estilo.
O
olhar de Loznitsa é frio, de dureza e anti-sentimentalidade,
evidentemente, mas antes de tudo este olhar parece a única
arma possível em um lugar fadado à danação.
Sushenya está amaldiçoado: a vida tornou-se um insuportável
caminho de desconfiança e desprezo após ele ser
libertado pelos alemães sem motivo aparente (apenas crueldade),
enquanto seus colegas de sabotagem a uma ferrovia usada pelos
nazistas foram todos enforcados. A trajetória de Sushenya
é a impossibilidade do mártir – e qualquer
sombra de heroísmo, salvação e redenção
– nessa terra de maldição. Nesse sentido,
Loznitsa está mais para um metafísico do que para
um realista extremo. Pois, da mesma forma que seu sentido de observação,
de detalhes e descrição o alinha à grande
literatura russa, Na Neblina atesta para o quanto o lugar
em Loznitsa não é uma abstração, mas
também não é pura matéria: há
uma conjunção de forças que transitam entre
o sensível e o moral, entre o que se vê e o que se
sonha, entre o ideal e o possível. Seus personagens têm
de lidar com isso. A Rússia de Loznitsa é um lugar
fadado a uma autofagia, como a neblina cinzenta e densa que engole
a imagem.
Novembro de 2012
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