in loco - cobertura dos festivais

Não Toque no Machado (Ne touchez pas la hache),
de Jacques Rivette (França, 2007)

por Francis Vogner dos Reis

Jogo de cena

O fato de Não Toque no Machado ser fruto de uma das principais cabeças do cinema moderno, não é algo que de imediato alce o filme a um patamar mais alto do que o de diretores mais jovens. Assim como não seria justo transformar Jacques Rivette em autor hors concours, porque essa seria a melhor estratégia pra abafar o impacto de seu filme, como se seus trabalhos representassem um interesse à parte da arena em que se digladiam as questões estéticas do cinema contemporâneo. A realidade é que o diretor tem em seu novo filme uma obra-prima que realiza um “estudo de cena”, uma espécie de revisão do estatuto da mise-en-scène. Nada mais atual que isso, e o interessante é que essa preocupação tem vindo consistentemente de veteranos: Manoel de Oliveira em Belle Toujours, Claude Chabrol em A Comédia do Poder, Alain Resnais em Medos Privados em Lugares Públicos, Clint Eastwood em A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima, Jean-Claude Brisseau em Os Anjos Exterminadores (embora também habite cineastas mais jovens, como Richard Linklater em Antes do Pôr do Sol).

Não Toque no Machado é o triunfo de uma mise-en-scène que visa problematizar uma noção elementar de cena na contramão das tendências mais “quentes” do cinema contemporâneo, que vão prezar sobretudo pelo filme que trabalha de modo transparente o seu dispositivo. Por isso, antes de tudo, prestemos atenção nos filmes mais recentes dos confrades Eric Rohmer, Claude Chabrol e Jacques Rivette: a dramaturgia para eles não consiste exatamente na revelação das potencialidades secretas da ficção, nem na habilidade em se contar bem uma boa história. O que existe no cinema dos ex-jovens turcos é uma dramaturgia que se dá a partir da ficcionalização que os personagens fazem de si mesmos e de suas trajetórias. Até então nada de novo, já que pelo menos Rohmer e Rivette fazem isso há cinqüenta anos, desde os seus primeiros curtas. Mas por que o interesse por um filme como Não Toque no Machado cresce cada vez mais? Talvez porque (além é claro, do gênio particular do cineasta em questão) ele afirma a “cena”, em uma época que valoriza sobretudo os fluxos de imagem.

Os filmes de Jacques Rivette compartilham entre si de um esquema que vai dispor os personagens como jogadores. Não Toque no Machado não diverge disso, inclusive baseando-se em Balzac, escritor que era um arguto observador e sistematizador dos jogos – de poder, de aparência – sociais, e por isso, interlocutor ideal para as preocupações do cineasta. No entanto, este seu novo trabalho é especial porque o diretor consegue fazer dessas obsessões que o acompanham durante toda a carreira, uma bela reflexão sobre o estatuto da ficção. Antes que se escondam os princípios da encenação, seu mecanismo vai necessariamente ser um comentário sobre a construção dramática como um jogo de minúcias muito bem arquitetado, que foge do controle de seus jogadores. Característica principal: Rivette sabe que não há como fugir do xeque-mate, mas prefere acreditar que o “blefe” é o princípio fundamental para a existência do jogo. O blefe é uma arte e só existe jogo se ele é executado com primazia, mas ele também é um risco, e como todo risco, pode fugir do controle.

Testemunhamos no início de todas essas cenas uma preparação litúrgica – e não à toa o filme se inicia na igreja durante uma missa em que uma voz maviosa entoa um canto sacro. Como é um convento carmelita, a clausura não permite que se veja as freiras, por isso, o espaço da igreja é dividido com uma cortina vermelha, o que indica que de certo modo também, que o espetáculo – ou o drama – está do outro lado da cortina. O protagonista Armand é trôpego e está visivelmente vulnerável. O cineasta realiza um contraste entre a impecabilidade do ambiente e da ambientação em si, com o desespero febril de seu protagonista. É como se Rivette nos desse a ver, dentro da própria diegese de seu filme, o rigor ritual dos personagens para a representação a que se propõem.

Todos os encontros de Armand de Montriveau e de Antoinette de Langeais, são precedidos de um momento em que ela, em seus aposentos, entra na sua personagem, se prepara para que Armand a veja da maneira como ela deseja. Ambos jogam, é verdade: ela com mais frieza e ele no limite de seus controles (o que fará com que em certos momentos ela também perca o controle). É como se ele apostasse tudo, e Antoinette lhe aplicasse uma sucessão de blefes, logrando suas tentativas quase desesperadas de tê-la pra si.

Cada cena possui uma estrutura muito rígida, mas que possibilita ao diretor sempre instaurar uma crise. Um exemplo é quando os amantes se encontram pela primeira vez no filme, cinco anos depois dos acontecimentos que a seguir serão relatados: nesse encontro tardio, ela se tornou uma freira de clausura e ele seguiu sua carreira militar. Uma grade os divide e eles conversam em francês, porque estão na presença da madre superiora que fala somente espanhol. É um diálogo não muito rápido, mas preciso. Quando a paixão emerge, vem acompanhada do desespero. A freira Antoinette grita em espanhol que aquele homem não é seu irmão como havia alegado, mas sim seu amante. A superiora corre e fecha a cortina vermelha que os dividia. A cena é brutalmente interrompida. A interrupção do que vimos contém uma crueldade que só Buñuel conseguia extrair do cinema. A concisão, a marcação, a composição e o ritmo condensa toda a motivação de Não Toque no Machado. Raro no cinema é essa exploração dramática substancial, que faz emergir da cena tudo o que ela pode dar. Quantos cineastas hoje em dia conseguem fazer isso?

O fato de ser este o filme católico de Rivette não quer dizer que isso seja uma profissão de fé religiosa do cineasta. Esse catolicismo vem no sentido de fazer compreender que a crença do que vemos se dá não pela opção de uma idéia (ou da execução de um conceito), mas pela prática da representação, seja nessa teatralidade litúrgica (de organização ritualística), seja na força do relato e da palavra como meio de instituir uma moral, de construir um mundo com uma finalidade clara e derradeira. Não Toque no Machado é consciente dessa força. É um filme com um propósito claro, fechado, nada aberto ou relativo.

Mas essa noção de “classicismo” nada tem a ver com qualquer investida reacionária que pede que a roda da história volte e recupere uma mise-en-scène padrão, reconciliada e ideal. Muito pelo contrário. O caráter romanesco e teatral de Não Toque no Machado exige dessa proposta dramática e estética tudo o que ela pode dar em sua radicalidade, o que naturalmente vai transcender qualquer tentativa de categorização, descrição ou sistematização de seus meios e efeitos. É nessa zona indiscernível em que se dá o cinema – e em especial a obra-prima de Rivette – e é nela que ele é único.

Novembro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


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