Napoli Napoli
Napoli (idem), de Abel Ferrara (Itália, 2009)
por Filipe Furtado
A
Camorra somos nós
A certa altura de Napoli Napoli Napoli,
a prefeita de Nápoles dá uma entrevista consideravelmente franca
para uma autoridade, ainda mais surpreendente dentro de um contexto
de um documentário tão duro e confrontador sobre as realidades
locais (para tornar as coisas mais confusas o filme foi produzido
pela Secretaria de Turismo do município). Terá o cineasta americano
tapeado o governo local, ou há algo mais complexo em ação? Independente
das realidades do seu financiamento, Napoli Napoli Napoli
é a história de um encontro do cineasta marginalizado – o terceiro
longa do cineasta em 5 anos a ser feito na Itália– com uma cidade
ainda mais marginalizada. Um encontro que sugere uma colaboração:
a cidade pratica um pedido coletivo de ajuda, o cineasta encontra
nela outro personagem marginal que a sua câmera dura pode focar
com simpatia. Chamem-no de um documentário de terror e não estaremos
numa descrição exagerada.
O filme combina dois registros: um par de subtramas
fictícias que sugerem uma versão em tons mais quentes de Gomorra,
e uma série de entrevistas com napolitanos, focadas sobretudo
num grupo de presidiárias (na maioria presas por ligações com
tráfico de drogas). Em ambos, o que importa é muito menos a denúncia
em si do que o retrato de um mal estar generalizado. A presença
das prisioneiras pode sugerir uma metáfora da cidade como prisão,
mas um filme de horror desgovernado parece uma imagem ideal. Imigração
é um objetivo, a violência um final mais provável. Quando imagens
de arquivo da Segunda Guerra entram, em chave nostálgica, o gesto
sugere menos um excesso retórico da parte do cineasta e mais a
manifestação de um olhar coletivo doentio. Mal estar e desequilíbrio
sempre foram sentimentos muito caros ao olhar de Ferrara, que
na psique napolitana atormentada parece ter encontrado um dos
seus protagonistas mais adequados.
As entrevistas com as prisioneiras equilibram
um misto de cumplicidade e distância que aumentam a impressão
de fora de lugar. Napoli Napoli Napoli reforça o tempo
todo que seu olhar infernal tem o filtro de um estrangeiro, que
tem suas dificuldades com a língua e nem sempre consegue se entender
completamente com seus entrevistados. Ao aceitar que existe esta
barreira, o filme termina aproximando o dono do olhar dos seus
personagens, ambos cúmplices-participantes do mesmo desastre captado
(ou construído, nas seqüências de ficção). A Camorra somos nós,
uma das presas lembra. Não há escapatória já que, como outro habitante
local aponta, o mero ato de comprar um cafezinho num bar de centro
termina por contribuir para a mais famosa indústria napolitana.
A situação da Nápoles de Ferrara nos lembra um filme de Fritz
Lang: há de se suspeitar da virtude de quem clama inocência. As
histórias de como as presidiárias foram presas escondem, com freqüência,
uma banalidade que só reforça como a decadência e violência local
estão ali, na frente de todos.
Napoli Napoli Napoli não é um filme-denúncia sobre uma cidade abandonada no modelo do documentário-verdade
dos anos 60 de que o filme inclui trechos, nem um filme sobre
uma organização algo mitológica, mesmo que apresentada de forma
seca e “realista” como em Gomorra. O horror
napolitano está ali, pairando próximo a todos. Ferrara faz o caminho
oposto da denúncia-padrão já que no lugar de buscar o realismo
do retrato insere a ficção no meio de um filme que a sinopse descreve
como “documentário”. Se perguntado, Abel Ferrara provavelmente
diria que um filme como O Rei de Nova York também é um
documentário. Mas deixemos as classificações para os resenhistas
de sinopse e os acadêmicos: o que importa é que o mal estar napolitano
está ali na tela, muito próximo de nós. Nas imagens finais temos
o próprio Ferrara e alguns músicos amigos num show enérgico que
aparentemente tem pouca relação com tudo que veio antes, mas que
nos parece uma forma perfeita de enviar o espectador para fora
da sala de cinema. Está ali o mesmo espírito que conduz todo filme,
o mesmo tom casual que pode fazer esta “encomenda oficial” parecer
um filme menor, mas também a mesma abertura e cumplicidade que
marcam este documentário de horror.
Setembro de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
|