in loco - cobertura dos festivais
Nas Minhas Mãos Eu Não Quero Pregos,
de Cris Ventura
(Brasil, 2012)
por Raul Arthuso

A brutalidade do artifício

Existe a possibilidade de Nas Minhas Mãos Eu Não Quero Pregos ser tomado apenas pelos inúmeros problemas de feitura mais básica, bastante evidentes ao longo do filme. Toda a precariedade da fotografia, do som das entrevistas, a montagem sem rigor ou pensamento de ritmo, a precariedade das animações digitais e cartelas podem levantar a questão sobre se Nas Minhas Mãos... é um filme acabado de fato ou apenas um amontoado de fragmentos escolhidos aleatoriamente para compôr uma espécie de "institucional do artista", dando a impressão de um work in progress fadado ao fracasso. Mas por trás desse constrangimento técnico pode se esconder algo mais profundo - e problemático .

Em Nas minhas mãos... há uma personagem sendo documentada. Há, portanto, uma relação imaterial em jogo entre realizador e personagem. Porém, o cinema é uma arte de evidências e trabalha com o concreto, o material, o visível. Quando o filme começa, ouve-se a voz do escultor Maurino de Araújo, dizendo não querer ser filmado. Restaria ao filme tentar recompor esse personagem sem sua presença, tarefa que pode tanto dar numa bela investigação sobre um personagem-ausente quanto tornar o filme um elefante branco. Cris Ventura parte para a composição dessa personagem, fala de seu comportamento estranho, a atitude em relação à sua obra, sua reclusão... e, quando menos se espera, Maurino é filmado e partir de então a personagem-ausente ganha presença.

Diante desta pista falsa, revela-se o embuste não apenas desse momento narrativa principal, mas de todo o filme: Nas Minhas Mãos... flerta com o disfarce, a decisão de esconder sua real fragilidade com jogos de montagem e imagem - e a escolha da palavra jogo serve tanto para marcar o artifício quanto reforçar o lado mais infantil das escolhas do filme. Há uma distância entre a realizadora e Maurino, mas o dispositivo pouco discute a questão. A evidência é o quanto o filme não consegue desenvolver temas. Enfim, transformar uma polifonia de registros em uma idéia de filme, um discurso que ultrapasse o simples elogio genérico de um artista desconhecido por sua excentricidade, adjetivos não exclusivos a Maurino. A evidência é fraca. O dispositivo, por outro lado, é também genérico, convencional: o especialista sentado falando com o realizador. A montagem vira o verdadeiro dispositivo, como uma maquiagem que esconde as impurezas.

Ventura usa mão pesada, fragmentando os depoimentos, colocando algumas telas pretas entre eles como num desejo de fraturar a filmagem extremamente linear, desritmando e marcando os cortes, usando efeito de íris na fotografia, tela cortada ao meio com duas imagens, rimas visuais flertando com a videoarte. Apostar na superfície não é novidade no cinema, principalmente no documentário que se preocupa em dar conta de uma pessoa, uma missão na maioria das vezes maior do que a articulação de algumas idéias em alguns minutos pode dar conta. Nas Minhas Mãos... tem muito, na verdade, da inocência do documentário que acha possível esgotar o mundo, o real, a vida em sua reconsituição e padece exatamente pela falta de um norte que não seja a prova de um ponto que em nenhum momento é evidenciada.

Não se trata de forma alguma, de lamentar Nas Minhas Mãos... como um filme que não chega na personagem, pois o documentário não tem obrigação nenhuma disso como valoração. Um filme se faz não apenas do que se convencionou chamar de estética, nem apenas de um conteúdo importante, mas do diálogo desses dois estatutos, não só em suas forças, mas em suas fragilidades também. O problema do filme de Cris Ventura é como uma tragédia: lutar contra as fragilidades - e seus possíveis diálogos -, preencher as frestas do material com a areia do decalque, tentar resgatar o evidencial com a brutalidade do artifício.

Janeiro de 2013

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta