edição especial curtas brasileiros
2009 A duplicidade do olhar por
Luiz Soares Júnior
Nego Fugido, de
Claudio Marques e Marília Hughes (Bahia, 2009)
O
que mais me intriga em Nego Fugido é o corte, e acho que é por aí que o
filme se delineia (delinear mesmo: constituir uma duração, mas uma duração
dividida, repartida). Explico-me melhor: o corte é duplo, na medida em que ele
nos representa a dimensão alegórica do personagem que chega numa vila do interior
e se mimetiza, se mistura aos outros como se fosse um Outro. Daí o barroco das
perambulações (da câmera e da montagem), as interações folclóricas. Esta estratégia
rouchiana (até certo ponto) em que um Mesmo, ao mimetizar o Outro (os habitantes
do lugar, credores de uma cultura alegórica estranha à cidade, de onde vêm os
dois personagens, o rapaz e a moça) revelam que Mesmo e Outro são posições reversíveis,
fenomenológica e temporalmente, e não papéis estáveis e opositivos. O filme arquetípico
de Rouch que dinamiza esta estratégia é, claro, Les maîtres fous: oprimidos
e opressores, faces de uma mesma moeda? Não. Faces de uma mesma cena, um único
teatro: os negros encarnam os deuses do colonialismo, os deuses que eles queriam
ser se tivessem a força – social e econômica – para tanto. Encenar é se abrir
à alteridade da máscara.Mas
este é um primeiro “olhar” que o filme desvenda, e me pareceria menor (apesar
do fascínio que me inspirou uma encenação francamente aberta, mas talvez aberta
e narcisística demais, a todos os tipos de interpenetrações simbólicas e de imagens-fetiche,
que adquirem um tônus quase icônico: os caboclos de lança, o menestrel). O outro
olhar, que a montagem desvela, é o da moça, que filma o “palhaço” mimético: é
um olhar distante, ou antes desconfiado, e imediatamente veio-me à cabeça
o personagem de Inês Medeiros em Casa de Lava de Pedro Costa. Um outro
filme que também trabalha com dualismos de papéis, posições e reversões de poder
(poder entendido como a minha possibilidade de interpretar, de dar sentido ao
outro,e portanto compreendê-lo/amestrá-lo) e táticas de distanciamento/aproximação.
Não apenas da Alteridade afirmada por uma identidade personificada – o
Negro, o Leão, no filme de Costa -, mas do Outro telúrico, mítico, feminino: a
terra cabo verdiana e seus avatares; danças, corpos erotizados, mar.
Dois
olhares, claramente delimitados, que se julgam: o contraplano nos mostra uma moça
que julga não apenas ao filmar - e filmar é um ato absoluto de julgamento,
é o valorar inscrito em uma matéria a princípio definitiva, a película
-, mas que se mantém sempre à esquiva e à espreita, enquanto o rapaz se entrega
aos jogos e, nisto, se perde/permanece objeto para esta enviesada percepção (da
moça) que não se identifica à terra, a ele, a nada. No máximo, se plasma ao olhar
da câmera, mas isto é um gênero de pulsão – pulsão escópica, diria Daney – cujos
desdobramentos eu não me autorizo a desenvolver aqui. Janeiro
de 2010
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