ensaios
No Quarto de Vanda: de silêncios e de sombras
por Luiz Soares Júnior

"O futuro nos atormenta, o passado nos retém, é por este motivo que o presente nos escapa".
Gustave Flaubert, carta a Louise Colet.

"A Miséria é a carência do Necessário; a Pobreza, a ausência do supérfluo".
L'Invendable
, Léon Bloy.

"Quero te oferecer 100 000 cigarros loiros, doze vestidos de grandes costureiros, o apartamento da Rue de Seine, um automóvel, a casinha da mata de Campiège, a de Belle-Isle e um raminho de flores de cinco tostões. Na minha ausência, compra as flores que eu te pagarei. O resto, prometo-te para mais tarde. Mas acima de tudo, bebe uma garrafa de bom vinho e pensa em mim".
Robert Desnos, poeta francês, internado e morto no campo de concentração de Flöha, para Youki, sua esposa.

No Quarto da VandaEm uma entrevista, Pedro Costa conta-nos en passant o que lhe interessa filmar em digital: "Luto um pouco e resisto contra a inflação do cinema. O mais, o mais, o mais. É um reflexo da nossa sociedade. Por que não parar um pouco? Tudo tem um fim. Nós temos um fim. Nosso corpo tem um fim. As coisas têm limites. Eu sou por um cinema que respeita seus limites". No Quarto da Vanda é um filme que revela a quintessência deste cinema menor e empobrecido, deste cinema que assume os riscos de seus próprios limites; limites antes de tudo materiais (materialistas), como em todo grande cinema: pela escolha de uma MiniDV, numa época de grande precariedade técnica do equipamento - final dos anos 90 (de 1998 a 1999) - para filmar uma história que, embora se debruce sobre personagens e espaços alquebrados, na iminência da destruição, é de natureza épica: três horas de duração e enquadramentos esmerados, com o suntuoso claro-escuro tenebrista de um Trophime Bigot.

A monumentalidade e a fantasmagoria - estas sim, míticas, straubianas - de Juventude em Marcha anuncia seus lampejos redentoristas em No Quarto da Vanda. Pois a pradaria desolada da destruição de Fontainhas, que rumoreja no fora de quadro dos planos fixa e fielmente delimitados do filme - outra experiência dos limites, desta vez os limites brunidos dos planos do filme - é de forma contrapuntística ressoada - evocada, ressentida, resistida- pela crônica camerística que passeia ao longo dos planos: pois drogar-se, esperar pelo exílio e pela destruição é uma experiência tão legítima quanto qualquer outra e, como toda experiência, não merece um julgamento moral, mas um velar por e um diapasão: um olhar e um auscultar (Malebranche: a atenção é a prece natural do espírito).

Digo passeia, e não por excesso de retórica. Costa nos satura com a percepção do que aquela gente percebe, do que transita diante deles, no fora do quadro do desabamento de Fontainhas ou no fora de campo de um passado de que já não temos índices. Como bem diz Tag Gallagher, "para Costa, como para Ford, olhar as pessoas olhando é mais rico do que olhar o que as pessoas vêem". Esta "saturação" da percepção enviesada do mundo - do mundo como percepção de determinados personagens, determinados estados de espírito e atmosfera - como uma série. Séries, pois não só humanos: as paisagens também nos contemplam, correspondem ao nosso olhar - de pontos de vista que, jamais totalmente unificados ou articulados, acabam por nos dar a seqüência de pontos diferenciais a partir dos quais um mundo revela toda a sua translúcida intensidade - dramática, pictórica, cognitiva.

Nietzsche: "Para que a verdade absoluta existisse, seria necessária a existência de um ponto de vista exterior ao mundo, um ponto de vista que englobasse a  soma dos pontos de vistas parciais, das perspectivas que povoam a terra". Este seria o ponto de vista de Deus; como Deus a rigor não existe (e este é o princípio rigoroso do pensamento nietzscheano: a morte de Deus), não há a possibilidade de um conhecimento absoluto; mas há um fluxo imemorial que, se não podemos conceber como absoluto, ao menos podemos atestar a sua onipresença plástica e pré-existência a tudo o que é: o tempo, que infiltra estes grandes retângulos de sombra e luz coagulada, estes verticais blocos de estanho, estes baixos-relevos que se deixam acariciar pelo esquadro de uma sagaz geometria de ângulos, que descobrem cada personagem como uma incrustação num recanto particularmente recuado do quadro, à margem da margem da vida e do plano.

O SangueEste absoluto (lição de Lumière e de Straub, de Ozu e de Renoir, em gradações distintas) consiste na duração, no trabalho que o tempo opera - escavação, sedimentação, cristalização - sobre os territórios que o filme nos descortina. Cada plano de No Quarto da Vanda corresponde à fixação - neurótica em relação aos personagens, espacial na fixidez do enquadramento - de uma determinada vivência, ou mania, de um determinado trecho do passado ou característica pessoal: Vanda traz uma embarcação de brinquedo para casa, insiste com a mãe que se trata de uma antiguidade, se irrita, vai, volta; a mãe, em primeiro plano, letárgica sob o efeito da TV (temos um plano médio dos fundos de uma sala-depósito, onde se acumulam todas as quinquilharias da loja onde a mãe vende legumes), reage taciturnamente à imprecação da filha, como se já estivesse mais do que acostumada. Ou então são as memórias intermitentes de pessoas que morreram, ou do quase assassinato de um dos vizinhos por um bando de adolescentes, salvo pelo pai de Vanda; ou as rusgas entre as duas irmãs.

O tempo litúrgico que Costa dedica a  estas miudezas nos alerta sobre uma dualidade bem particular do tempo cinematográfico: o plano é um índice radical de presente, de um manifestar-se aqui e agora, o espaço da crônica e do registro "etnográfico/entomológico". Só que, como Gilberto Pérez nos lembra, "nós não tomamos um filme como um presente, pois o presente é onde estamos, e um filme, mesmo se consiste em um mundo animado em um agora, é um mundo localizado em outra dimensão". O tempo do espectador do cinema - da projeção do filme - não é o tempo da filmagem, que, embora se dê como a elaboração de um agora, contém a textura aurática e luminosa de um "aconteceu", de um não mais presente: o fantasma material. Como Schefer escreve, o cinema nos dá o tempo como uma percepção; o "aconteceu" apresenta-se como "acontecendo", o fantasma como ente percebido, o passado como atual. Não há ressurreições em cinema; os mortos permanecem mortos, tudo o que assistimos na tela é a projeção fantasmagórica de presenças para sempre desvanecidas, encapsuladas no tempo (pretérito) da filmagem. Mas vou arriscar uma metáfora fantasista aqui, com o risco de cair no mau gosto: é como se Deus enviasse uma câmera para o purgatório, e nos permitisse mais uma vez compartilhar das percepções dos mortos. Não uma ressurreição, mas uma presentificação.

E não é isso o que frequentemente fazem os personagens de Vanda? Fumar, cheirar, aconchegar-se um ao outro - mas também à escuridão, nicho de alienação e refúgio - brigar, esperar (e como esperam!, no vão das portas e soleiras, diante das casas e dos monturos, ao longo das paredes), vender couves, tomar um trago, falar sobre os mortos (ausentes presentes), falar sobre os vivos mas ausentes (presentes ausentes); não consiste nisto numa estratégia de acolher e recolher no plano um imenso fora de campo existencial e ontológico, esta encruzilhada de mortos e de possíveis que empresta a nossas vidas o caráter ex-tático de uma vivência que só pode ser resgatada retrospectivamente, quando acabada e outra? E não é a esta operação de reemergência de um tempo perdido para sempre - mas ainda uma vez, uma última vez, absolutamente presente - que a câmera de Costa, testemunha lapidar e confessionáriados personagens, se acumplicia? O quarto de Vanda é certamente um lugar onde as pessoas vão para se confessar, para se purgar - e renascer? - de uma vida, um passado, um até então hostis às suas latitudes, um mundo zumbi (Tourneur, ainda e sempre) que se opõe ao Eros dos personagens; aliás, como em Onde Jaz o teu Sorriso?, filme posterior realizado sobre o casal Straub, o mesmo confinamento monacal. São filmes que se configurariam como duas representações do ascetismo - o do resistente casal de artistas e da mulher que vira uma espécie de Mater Dolorosa para os deserdados da vizinhança?

O SangueO contracampo em Costa, desde o cocteaunesco e edipiano O Sangue, é uma forma de contrapor o cosmo auto-centrado de uma subjetividade que se refugia nos interiores - o triângulo entre o menino Nino, Vicente e Clara no primeiro filme, a enfermeira e o Leão em Casa de Lava - a um universo hostil que acossa, e finalmente intenta destruir este recanto de Éden: daí sua distância, a distância/oposição de um gesto que se aferra à superfície do mundo (a mão na fechadura em O Sangue, o homem tocando a rabeca em Casa de Lava) e do plano (contra) que recorta este mesmo mundo contra um horizonte, ferido a contraluz, de desolação. Os personagens dos filmes anteriores ainda perambulavam em um mundo cambiante, à busca de um porto onde engendrar uma história, onde recomeçar: o casal que os namorados tentam formar, a despeito do irmão menor e do passado devedor da família, em O Sangue; Mariana e o filho de Edith Scob, lembrança obsedante dos filmes de Georges Franju e de sua letárgica tecedura dos mitos das origens, Feuillade e o gótico.

Vanda, ao contrário, começa num porto seguro, ma non troppo - o quarto da Vanda, onde as duas irmãs dividem a mesma heroína alquimizada com tinta de lista telefônica - mas não saem daí: o extravio, a desterroritorialização territorializada é o princípio e a meta da excursão da excursão do filme, excursão que parte de Si mesmo em direção a um Outro, e que deste Outro retoma o caminho serpenteante - jamais um atalho - em direção ao Si mesmo: os personagens estão em uma perpétua deriva, contraponto da precisão mineral dos planos do filme: o fantasma material de que fala Pérez, o passado como uma percepção. Se em Ossos, Casa de Lava e O Sangue os personagens acabam por abandonar um triângulo de solidariedade ístmica, mesmo que dolorosa e exilada, em direção a uma deriva existencial - o menino ao final de O Sangue; Inês Medeiros e a ilha em Casa de Lava; Vanda e o assassinato do cunhado, no final de Ossos - em No Quarto da Vanda não há porto seguro a abandonar: o Lasciate ogni speranza voi che entrate já nos aguarda ao início do filme, é o seu dístico; a aventura é a de um naúfrago: aconchegar um passado morto mas ainda não enterrado e um futuro sem porvir, em um aprofundamento horizontal do instante, um instante extremamente dilatado, ponto de contato entre dois espaços impossíveis, dois tempos que jamais coincidirão entre si.

Os fantasmas que circulam entre Ventura em Juventude em Marcha aqui possuem uma "rarefação ontológica" ainda mais essencial: eles só estão presentes como um fiapo de ser, nos silêncios e deambulações dos personagens num espaço concentracionista, um espaço destinado a tornar suas idas e vindas circulares, concêntricas; nada passa em No Quarto da Vanda. É esta intransitividade do movimento (sempre restrito e vagaroso) e do tempo, esta repetição um tanto ranzinza das mesmas memórias e dos mesmos tiques, esta enervante ausência de contraplano nas sequências de diálogos, esta morosidade e este torpor que reabsorve o tráfego dos fantasmas, do que insiste em não passar. Freud nos ensinava que a repetição é a mecânica do fantasma; na compulsão à repetição dos pacientes submetidos a processos traumáticos, ele identificou a pulsão de morte, este grande mecanismo de mortificação da durée, este container do dinamismo vital, que levava as pessoas a reproduzirem determinados gestos e comportamentos, a se cristalizar/crisalidar em um mesmo modo de ser, a se subtraírem ao tempo, e portanto à vida.

O SangueOs personagens de Vanda permanecem encarcerados nesta dinâmica sem dinâmica, neste dínamo emperrado: em Juventude em Marcha, Costa exorciza os fantasmas de Ventura ao "iconizá-los" - ou antes: ao tornar igualmente icônicos e espectrais os vivos e os mortos, os fantasmas e os entes presentes, o mito e a História - e assim recuperam uma dignidade mítica para a vida que insiste em não passar, que se refugiou à sombra da Morte. Em Vanda, os fantasmas infectam o ar e o silêncio, se ocultam sob a trincheira do plano; são inatingíveis, irrepresentáveis, pois constituem a própria substância dos seres. Seria interessante inclusive evocar, a este respeito, o sentido do conceito de Schelling, unheimliche, que se refere à estranheza do que "em nós deve permanecer secreto e oculto, mas que acaba fatalmente por vir à luz": a mortiça iluminação e o estado de sonambulismo em que permanecem mergulhados os personagens de Vanda evoca esta vivência nos limites do mineral, que apresenta os corpos humanos antes de tudo como um reservatório de fantasmas; diques onde um passado grande demais - mortos em demasia, sofrimento em demasia, vivências mal digeridas pela consciência - acaba por infiltrar, com um torpor próximo dos estados hipnagógicos, a vida cotidiana das pessoas. Neste sentido, a droga é uma metáfora absolutamente adequada para exprimir este décalage do sujeito em relação a si mesmo, separado da própria experiência pelas injunções do trauma ou da alienação.

Assim, se Ventura pode encarar seus filhos - vivos ou mortos, presentes e passados - face a face é porque já se distanciou deles, já os re-apresentou. Vanda é um filme que se nutre vitalmente - paradoxo cruel - dos fantasmas, do que jamais passará, inclusive eu; é um filme de uma humildade franciscana, neste sentido, pois reconhece na pobreza, antes de tudo, uma experiência do que é essencial, daquilo que constitui mais integralmente o nosso ser. A grande dívida ética de Costa para com essa gente é nos mostrar que este alimentar-se do espírito por si mesmo pode servir-se de qualquer matéria, êxtase místico ou da heroína: o que importa, como bem dizia São Paulo em sua messiânica Epístola aos romanos, é o uso que fazemos destas pobres matérias.

Dezembro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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