emulando Todo
o cinema do mundo por Diego Costa Assunção
Um carro atravessa uma rua, a câmera acompanha seu movimento.
Seria uma homenagem aos filmes de gangster da década de trinta, como Scarface,
de Howard Hawks? O movimento da câmera se completa quando se enquadra a fachada
de um cinema iluminada pelo letreiro que anuncia a exibição do filme mexicano
Amores Perros, de Alejandro González Iñárritu: seria uma homenagem aos
jovens realizadores? A iluminação do letreiro se apaga, o cinema já não é mais
cinema. Ao entrarmos no recinto, se vê sobreposto à tela um palco armado para
o show de músicos cubanos. A homenagem não é uma homenagem – seria então uma alfinetada?
O cinema estaria morto (as luzes que se apagam no início) e se tornado um mero
palco para shows de frivolidades (os cubanos significariam o cinema de Iñárritu)? É
nesse palco que o cineasta, apelidado pelos artistas cubanos de Miguel Cimino,
conduz sua portátil câmera digital e filma a apresentação dos músicos. Os movimentos
da câmera são ritmados aos movimentos dos corpos e a montagem flui ao som da música,
como se estivéssemos no início na cena da parada chinesa do filme O Ano do
Dragão, na valsa ao redor da árvore de O Portal do Paraíso ou em O
Siciliano, cena na qual Salvatore Giuliano dança jazz com sua noiva. Mas não
é isso: esse é o cenário do curta-metragem de três minutos intitulado No Translation
Needed, episódio de Michael Cimino para o filme Chacun son Cinéma (A
Cada um o seu Cinema), projeto composto por outros 34 curtas dirigidos por outros
34 cineastas e idealizado em comemoração ao aniversário de 60 anos do festival
de Cannes – e que, lançado simultaneamente no Festival e em DVD na França, já
vazou pelo mundo nos emule da vida. Há pouco mais de dez
anos (desde Na Trilha do Sol) Michael Cimino não fazia um filme. Em seu
retorno, uma obra nem um pouco diferente dos controversos filmes que ficou conhecido
por realizar. Está presente o fascínio dele por uma torrente de amor e ódio envolta
em conflitos étnicos (geralmente confundido por um gesto xenófobo pelos críticos).
A intransigência de Miguel Cimino o torna um personagem muito próximo dos interpretados
por Mickey Rourke em filmes anteriores do cineasta. Já a cantora cubana, que dança
e seduz a câmera do cineasta, não é muito diferente da Ariane no O Ano do Dragão,
amante e inimiga do protagonista. Três minutos são suficientes
para que Cimino num vomitório descontrolado e poético, homenageie Jean-Luc Godard
(o diretor que fuma charutos e usa óculos de largos aros), reencontre e purgue
velhos fantasmas (o diretor esbofeteado pela atriz que não aprova o resultado
do filme parece uma piada sobre a péssima recepção e má vontade com a qual o público
recebeu seus últimos filmes) e faça troça do cinema contemporâneo, ao imprimir
na montagem um ritmo que desconcerta uma linha narrativa que aparentemente iria
manter – o curta-metragem pula da cena da filmagem para a sala de edição (computadorizada),
onde o diretor manda o editor botar a imagem da atriz de ponta-cabeça (?), para
depois, em seguida, mostrar a sessão do filme, que é visto e desaprovado pelos
artistas que participaram dele. Michael Cimino parodia as
estruturas truncadas e as imagens cheias de tiques dos filmes de cineastas como
Iñárritu, mas seu talento o faz que se aproxime mesmo das comédias abobalhadas
de Howard Hawks. Se o Miguel Cimino é uma homenagem ao Godard, seu andar remete
também ao cientista tonto feito por Cary Grant no Levada da Breca. A cantora,
que encanta e desafia os poderes do cineasta (a mulher emancipada e, também, sensual),
seria uma versão estilizada da Angie Dickinson de “Rio Bravo”. Quatro
horas ou três minutos, é uma questão pouco importante. A intensidade de No
Translation Needed é a mesma que caracterizou os filmes anteriores de Michael
Cimino: uma crença desmedida na capacidade do cinema de falar sua própria língua,
aquela que se faz por movimentos de câmera, dos disposição dos atores no quadro,
da montagem que nos leva de uma dimensão (a filmagem) à outra (a sala de montagem).
Ainda há o impetuoso senso crítico (na melhor tradição aldrichiana ou fulleriana),
que não é visto com bons olhos quando se trata de filme-celebração “made for
festivals”, etc – o que torna mais compreensível a reação de pessoas que taxaram
o filme de “vergonhoso”, como Amir Labaki. Em três minutos,
o cineasta driblou as lamúrias e o clima complacente, fugiu de fazer uma homenagem
bem intencionada. Chamem de megalomaníaco, mas Cimino contou em seu curta-metragem
de três minutos toda a história do cinema, toda a história do seu cinema. Fez
isso porque talvez fosse sua última chance de tirar tudo o que tinha na cabeça
antes do mundo acabar. Pois Michael Cimino é como aquele bêbado incômodo convidado
para uma festa: ele não perde a chance de vomitar no anfitrião toda a bebida consumida,
ao término do evento. editoria@revistacinetica.com.br
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