O Contestado - Restos Mortais,
de Sylvio Back (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente
Vozes
do além, imagens do aquém O Contestado
– Restos Mortais começa com uma montagem rápida
de rostos indistintos (no sentido de não serem identificados), que alternam uma
sequência rápida de frases sobre ou a partir do conflito acontecido em terras
catarinenses e paranaenses na segunda década do século XX. O filme parece propor
naquele momento uma noção de sinfonia de incompletudes, com as frases interrompidas
de maneira bastante abrupta para dar lugar a outras, criando um sentido de fluxo
que preza menos pela informação factual e mais pelas faíscas de saber que saem
daqueles aparentes choques entre as palavras.
Se tem algo de bastante
extenuante, esta primeira seqüência, pré-títulos iniciais, também é o que o filme
tem de mais forte em toda sua estrutura, enquanto discurso. Porque depois que
volta dos créditos, O Contestado assume um formato bem mais domesticado
de lidar com a História, apelando quase sempre para as cabeças falantes divididas
em duas vertentes: os detentores do saber histórico-científico (sempre
filmados num curioso fundo negro sem localização, como se as vozes deste saber
flutuassem num outro plano, quase extra-terreno) e os detentores do discurso direto
da vivência (e como não há mais sobreviventes, falamos aqui dos descendentes
destes, que receberam as histórias pela via oral, e falam, aí sim, devidamente
localizados: em suas casas e espaços próximos aos acontecimentos). Embora
com esta descrição provavelmente demos conta de algo em torno de 90% do tempo
de tela de O Contestado, certamente são os outros 10% que mais atenção
atrairão para o filme, num movimento sintomático tanto das intenções do filme
ao utilizar estes expedientes quanto da capacidade destes de polarizar os discursos.
Falamos aqui, primeiro, de algumas “brincadeiras” (e o termo se aplica perfeitamente)
de reconstituição dos eventos: ou a animação baseada, principalmente, em caricaturas
da imprensa da época; ou cenas filmadas com bonecos interpretando soldados e jagunços
ao longo de uma maquete das florestas e vilas de então (que surgem no filme com
efeitos visuais que remetem à visualidade do cinema da época dos acontecimentos
– ou seja, em preto e branco e cheias de riscos na imagem). Mas falamos, principalmente,
da filmagem de “entrevistas” com cerca de 30 médiuns, que estariam incorporando,
no momento destas cenas captadas, algum dos presentes nas cenas (jagunços, soldados,
mulheres, crianças). Do primeiro expediente, sobra bem pouco mais do que a sensação
de um desejo de dar ao filme um formato menos duro do que as seguidas entrevistas
– algo que não consegue fazer, não só por sua curta duração, mas principalmente
por parecer tão completamente desnecessário e sem força (talvez apenas
as sobreposições de fotos da época tenham efeito estético
forte). Já do segundo instrumento, se demanda maior atenção, também não se pode
dizer que chegue a cumprir de todo o papel que lhe é dado. Isso
porque, se estas imagens até servem, nas suas primeiras aparições,
a seus fins desestabilizadores, seja representando uma presença (se acreditarmos
na sua incorporação espiritual) ou uma mediação menos autorizada (se duvidarmos
da incorporação, porque aí aqueles médiuns não têm nem os diplomas e anos de estudo,
nem a descendência que valide sua presença na tela), no fundo a maneira como o
filme as une ao seu discurso acaba permitindo que tudo isso seja resulte ao final
bem pouco poderoso. Em parte, por sua presença ser uma porcentagem tão pequena
de tempo no meio a discursos tão francamente enfadonhos da parte de historiadores
e descendentes; mas, principalmente, porque, uma vez estabelecidas como parte
do discurso do filme, estas imagens vão e vêm quase sempre com o mesmo sentido:
nunca adicionando nenhuma informação para além dos gritos de sofrimento e confusão
(afinal são espíritos assombrados pelas suas passagens dolorosas),
e interpeladas por perguntas que tentam contextualizá-las, acalmá-las ou atiçá-las,
resultando em pouco mais do que a angústia por este interrogatório literalmente
extra-terreno - que pode ser ridículo para um descrente radical, mas que
nos outros espectadores gera incômodo apenas pelo bem estar do espírito
ou do médium em si, nos retirando completamente do filme.
Mas de fato o grande motivo para os sentimentos
de enfado e desconforto vem de um simples fato: a estruturação
de O Contestado se dá de tal maneira em linha reta (não
por acaso, dividida em capítulos que tentam seguir a cronologia
dos acontecimentos) que, por mais que tente usar estes expedientes
para tentar quebrar a idéia da História como documento fechado
e morto, o filme resulta extremamente didático, principalmente
pelo seu modelo exaustivo (onde nem o excesso de episódios dissecados,
nem o excesso de falas sobre cada um deles parece se justificar).
Ao fim e ao cabo, por mais que incorpore vozes de quem for (historiadores,
sobreviventes, espíritos encarnados), O Contestado não
escapa ao sentimento de possuir apenas uma tese a repisar, que
sai tão límpida ao final como estava no seu começo: a de que este
conflito teve, na verdade, muito pouco sentido para além de uma
série de dantescos massacres e crimes. Constatar esse fato seguidamente
é algo de interesse? Histórico, talvez; sociológico, com certeza
(no sentido de ir contra o discurso reinante do brasileiro como
ser pacífico por natureza); mas cinematográfico, bem pouco.
Abril
de 2010
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