Fora do Jogo (Offside),
de Jafar Panahi (Irã, 2006)
por Cléber Eduardo

Mais uma mudança em Jafar Panahi

Quem acompanha o percurso do iraniano Jafar Panahi está habituado às suas mudanças de registro. O Balão Branco parecia introduzir o diretor no terreno da jornada épica minimalista, centrada na repetição de uma mesma situação miúda, espécie de variação mais singela de Abbas Kiarostami em Onde Está a Casa de Meu Amigo?, com uma criança vivendo pequenas variações de um mesmo acontecimento. O Espelho já mudou completamente: manteve-se a criança e seu deslocamento por Teerã, mas, dessa vez, o diretor radicaliza sua aproximação com Kiarostami, expondo a metalinguagem sem deixar a encenação de lado nessa operação de reflexividade simulada – o que o aproxima, até mais, de Mohsen Makhmalbaf. Já O Círculo nos apresenta, com alto grau de documentarismo (uma característica mais forte em Panahi que em Kiarostami ou em Makhmalbaf), a inserção do autor na política, de maneira nunca tão direta no cinema iraniano, centrando o enfoque na denúncia de maus tratos às mulheres no regime machista e teocrático dos aiatolás.

Fora do Jogo (filme seguinte a Ouro Carmim, não visto) começa com o documentarismo dos filmes anteriores e com a aparência da mesma denúncia feita em O Círculo. No entanto, algo mudou daquele filme para esse, talvez com Panahi, talvez com o Irã, talvez com as mulheres, porque o tratamento é distinto. Talvez Panahi também esteja respondendo, na tela, às críticas de Kiarostami a O Círculo: para Kiarostami aquele filme, ao contrário de seu Dez, não era sobre mulheres do Irã, mas sobre atrizes representando como Panahi via as mulheres no Irã. Ou seja, oprimidas, sem espaço de respiro, sem campo de atuação, sem potência. Fora do Jogo relativiza O Círculo e, embora continue discutindo a censura comportamental regulada por lei, mostra a rebeldia feminina, o prazer da convivência entre elas, a negociação delas com os homens, sem jamais aceitar a condição de subalternas, sem jamais aceitar a ordem das coisas com passividade.

Para expor essa nova visão, ele tem como premissa uma partida de futebol entre Irã e Bahrein, pelas eliminatórias da Copa de 2006, na qual mulheres não podem entrar. E as que entram, conforme o filme mostra, vão ter com a lei. Mostrando de forma hiper-realista o clima no ônibus que leva ao jogo uma menina disfarçada de rapaz, a “muvuca” nas ruas gerada pela partida, a tensão na entrada diante da fiscalização da polícia e momentos no interior do estádio e da própria partida (em plano geral), Panahi obtém ótimos efeitos da convivência entre ficção e acontecimento real (todo o contexto do jogo), mas, talvez por conta do processo de filmagem no calor da hora (do jogo), deixa sua ótima premissa ratear quando o filme pede uma encenação menos solta.

Isso acontece justamente após as meninas serem presas em um cercadinho no estádio, passando a levar conversas ao mesmo tempo tensas e anedóticas com os guardas (uns bobalhões com pequena autoridade), sobretudo para explicar ao espectador estrangeiro as particularidades do regime de proibições às mulheres no Irã, levando as personagens a questionar porque não podem fazer isso ou aquilo. De qualquer forma, se essa falta de rigor fragiliza o ponto de partida, o desleixo narrativo, com as cenas sendo conduzidas por coadjuvantes e figurantes em alguns momentos, dá um frescor à condução do relato, que, assim, evita fixar-se em um protagonista e olha para vários lados em sua evolução.

Sempre com tom afetuoso, às vezes singelo demais, às vezes didático e ingênuo, Panahi tem seus méritos. Um deles é o de não fazer dos guardas um bando de carrascos, mas, sim, mostrá-los como funcionários insatisfeitos do Estado, que não necessariamente assinam embaixo das regras de proibição. Outra qualidade é expor o paradoxo do comportamento das mulheres, que, embora sejam vítimas de um Estado-Nação tirânico em relação à elas, não vacilam em vestir a camisa da seleção e gritar pelo Irã (paradoxo ainda maior se levarmos em conta a importância dada à origem étnica e regional dos iranianos, como fica explícito na escalação ou não do craque Azizi). Talvez não seja um filme marcante na continuidade da obra de Panahi, mas, certamente, é uma obra pautada pela dinâmica de seu processo de realização (mais que outras), gerando assim um contato nosso com os acontecimentos sem muitos filtros ficcionais (ou com filtros às vezes precários nessa função).


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