in loco - cobertura dos festivais
Sobre o Tempo e a Cidade (Of Time and the City),
de Terence Davies (Inglaterra, 2008) por Eduardo
Valente Tempo,
tempo, tempo...
Talvez a maneira mais forte de se aproximar
deste primeiro filme de Terence Davies em quase oito anos seja sabendo que ele
foi uma encomenda pelas comemorações por 2008 ser o ano em que Liverpool (cidade-natal
do diretor) foi escolhida para ser a capital cultural da Europa. Não que o filme
não tenha qualidades e questões que mereçam ser discutidas independente destas
circunstâncias, mas principalmente porque estas sobressaem ainda mais quando pensamos
a origem a princípio extremamente utilitária do projeto, e a maneira como Davies
se aproveita então da encomenda para fazer aquele filme que, inevitavelmente,
mais o interessava fazer.
E
o filme que interessava a Davies fazer não era um filme sobre Liverpool, mas sim
sobre a sua Liverpool – o que significa dizer que seria um filme sobre o passado
e as memórias (visto que sua vivência mais forte com a cidade foram nas primeiras
décadas de vida). Pensada assim, a opção de Davies por usar em 95% do tempo da
duração do filme imagens de arquivo pode parecer uma obviedade, no entanto a maneira
como ele as usa vai bem além disso. Primeiro, porque ele não vai em busca das
“grandes imagens” (embora tenhamos uma coroação aqui e um casamento real ali –
não por acaso, talvez, os momentos mais fracos do filme, ainda que bastante ancorados
na visão pessoal de Davies sobre o tema), mas sim das pequenas imagens de arquivo,
aquelas que certamente não foram geradas pensando em se tornarem materiais de
pesquisa ou de registro histórico, mas que, paradoxalmente, por isso mesmo hoje
mais ajudam a olhar para um tempo passado.
Através do uso de uma narração
em off hiper-pessoal, a operação realizada por Davies no filme é a de tornar
aquelas imagens de registros da vida em família (ou no trabalho) de uma série
de pessoas estranhas na sua própria história, narrando assim, em primeira pessoa,
aquelas imagens que são absolutamente distantes dele no sentido estrito, mas que
se tornam suas como resultado. Paralelamente a isso, principalmente pelo uso que
faz da música, Davies consegue ir tirando daquelas imagens banais um substrato
mítico que ajuda a que elas se despersonalizem na perspectiva daquele que são
realmente mostrados, mas que acabem se tornando extremamente pessoais para ele,
mas mais importante ainda, para o espectador. Trata-se de um artifício de mistura
de (auto)ficção e documentário que, se está longe de ser absolutamente original,
se destaca aqui pela inteligência e ironia com as quais Davies o realiza.
No
entanto, mais do que um filme sobre a memória de uma pessoa (e a partir daí, de
uma cidade), este é um filme sobre a passagem de tempo – e não só a passagem de
tempo na cidade, mas a passagem do tempo da própria vida de Davies. Trata-se,
por isso mesmo, de um filme inevitavelmente nostálgico, em que Davies se diverte
mesmo em ser abertamente conservador (por exemplo, ao colocar-se contra o surgimento
do rock popular dos Beatles – um dos maiores patrimônios culturais de Liverpool,
afinal – e a favor, cada vez mais da música clássica). Porém, não só a (auto)ironia
com seu conservadorismo e nostalgia se anulam como discurso efetivamente conservador,
como o filme assume o seu devido lugar como produto humano de alguém que, na medida
em que se aproxima da morte, se reconhece cada vez menos no mundo e na constatação
de que este seguirá adiante independente de sua partida.
Mas
é um outro elemento do filme que constantemente o afirma não como obra simplesmente
nostálgica ou conservadora ou fatalista. Impressiona como, a cada passagem de
tempo mais longa que vai representando (e Davies o faz principalmente através
da atenção à arquitetura da cidade – que, curiosamente, é sempre parecida seja
em cores ou preto e branco, seja na horizontal ou na vertical), uma mesma imagem
parece voltar obsessivamente: a das crianças que brincam e circulam pelas ruas.
Davies vai constatando com suas imagens que, não importe quanto tempo passe, as
crianças sempre ocupam as ruas, e estranhamente elas se parecem sempre iguais,
sempre as mesmas crianças. Não por acaso, no final, quando passa a imagens captadas
na Liverpool de hoje, Davies foca e acompanha uma criança por uma praça: o olhar
dele parece fascinado pelo fato de que estas imagens de criança, seja sessenta
anos antes (quando ele era uma), seja hoje, parecem eternas. E que a cidade se
constrói e mantém (daí os monumentos, os grandes prédios) em constante renovação
através destas. Quem passa é o cineasta – a cidade fica (assim como o filme).
Setembro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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