O Gângster (American Gangster),
de Ridley Scott (EUA, 2007) por Paulo Santos
Lima
30 anos, mesma palheta Ridley Scott
é um caso curioso de cineasta que transita por diversos gêneros (do filme de guerra
à ficção científica e comédia romântica), mantendo um estilo bem semelhante entre
eles, o que tanto favorece alguns de seus trabalhos como destrói um punhado de
outros. O acerto, inclusive, é uma raridade, caso de Alien – O Oitavo Passageiro
e Blade Runner, duas ficções científicas cujas imagens estilizadíssimas
adotadas por Scott e fotógrafo auxiliam àquilo que estava sendo contado. E auxiliam,
também, num cinema essencialmente de cenografia, o do tableau cujo trabalho
de fotografia se faz mais pela luz do que pelos movimentos de câmera. Diante destes
filmes que usam “quadros” para ilustrar histórias, que então o roteiro seja bom
à beça. O que, também, não é o caso em boa parte da filmografia de Scott, como
atestado na história de vingança que é Gladiador. Há,
entre êxito e ruína, alguns francos esforços por maior “densidade”, como em Cruzada
e O Gângster. Ambos tratam de universos que aludem a discussões maiores,
o conflito no Oriente Médio no primeiro e as diarréias políticas dos Estados Unidos
dos anos 70 em O Gângster. É no esforço em dar conta de um universo gigantesco,
sem com isso sair de uma fórmula bastante esgarçada (a da explanação de dois universos
cadenciada pelo paralelismo, a fim de dar mais complexidade ao tema) que o filme
acaba quebrando as pernas. Temos
a trajetória de um nobre criminoso, Frank Lucas (Denzel Washington), espécie de
self-made man que faz do comércio de heroína uma verdadeira empresa rentável,
acima da concorrência. O elegante Lucas é violento como o demônio, mas é todo
família – assim como seu intérprete, Denzel, um cara boa-pinta e carismático.
Em paralelo, há o suarento Richie Roberts (Russell Crowe), policial de
ética irretocável, porém bastante negligente com seu filho e ex-mulher. Lucas
ascende ao passo que Richie arruína-se na sua vida pessoal. Lucas vive às pompas
enquanto Richie come sanduíche de embutidos, usa roupa puída etc. Esse
antagonismo de dois seres e seus mundos ilustra algo macro, o país – o que o filme
faz questão de apontar a todo instante, com imagens televisivas sobre o desastre
no Vietnã, o rosto pífio de Richard Nixon, a própria idéia de Frank Lucas pegar
heroína de primeira da Tailândia e trazê-la seguramente aos Estados Unidos com
os aviões do exército americano. Se a fonte das drogas é algo mais entrosado com
a narrativa, os excertos de contextualização política são injeções adicionais
e reiterativas que não fazem cadência com o fluxo de acontecimentos; são sobremaneira
imagens cujo discurso se faz pela aula geopolítica da fala (algo, inclusive, que
está também nos diálogos dos personagens ao longo do filme). Se
fazer um panorama geral a partir de um universo mais fechado, inclusive o que
circunda o drama pessoal dos personagens, não é uma opção indigna (o apoteótico
Gangues de Nova York que o diga), O Gângster erra pela opção megalômana
e pelo modo como tenta resolvê-la. Num cinema como o de Ridley Scott, em que tudo
tem de ser verbalizado como também mostrado, gasta-se um punhado de planos com
baboseiras e sacrifica-se tantos outros que seriam mais essenciais. Por exemplo,
ao abrir o foco para dois personagens, mostra-se em ritmo telegráfico a trajetória
paralela de ambos, mas sempre en passant e, na correria do pingue-pongue,
opta-se pelo que há de mais raso e dramaturgicamente manjado. Nessa fluidez, temos
bandido e tira apresentados com interferências, cumprindo mal o papel de representar
tanto o personagem (diegese) quanto de arquétipo sobre o que está fora da diegese
(aquilo que nos é indicado por “placas de sinalização” vinda dos tais excertos).
A trama, por conseguinte, move vários eventos, do tráfico de drogas à corrupção
policial e crises familiares – tudo isso resolvido em cenas que duram poucos minutos,
tornando tudo gotejado homeopaticamente. Mas
é na confecção estilística que Scott erra feio, porque seu cinema de cenografia,
com a típica fotografia de luz branca fazendo corpo num espaço esfumaçado (seja
o do Sudeste Asiático, seja o da cozinha arruinada do policial), não sai do bate-volta,
com montagem congelada, frigorífica quase, como nos campo-contracampos dos inúmeros
diálogos, em que cada conversa ganha várias e dispersivas tomadas que nunca rompem
o previsível de mostrar exatamente quem fala e saltar para o interlocutor respondendo.
O clímax do filme, no embate entre lei e criminalidade, é um retalho de planos
rápidos sem qualquer inspiração ocular, filmando qualquer coisa relâmpago dentro
da cena (os personagens com suas armas, mas poderia ser qualquer coisa). Nesse
registro bastante morfético, numa dramaturgia anos 80 timidamente renovada e tratando
de um mundo de coisas, o que vem do filtro é um reles embate entre bem e mal no
qual o bem tem suas crises e o mal é mais um valioso mito que mau, e o tal estudo
sobre os Estados Unidos dos anos 70, que parece de fato atual, torna-se um mero
ruído, item acessório do drama pessoal dos dois protagonistas. Tira e traficante
tornam-se dois instrumentos para a narração, o que, num roteiro e direção bastante
simplórios, significa bonecos falando uma série de informações — mais a serviço
do drama do que do diagnóstico, vale relembrar. Curiosa é a referência que este
O Gângster faz ao genial Operação França (1971), de William Friedkin,
sobretudo nas tomadas que Ridley Scott faz de Nova York, meio miméticas aos trilhos
aéreos filmados por Friedkin, e a alternância entre penúria material e dignidade
espiritual do policial versus fausto material e miséria humana do traficante.
Temos, nessa emulação bastante retrô, no meio do caminho da estrada, uma passagem
pelos anos 80 que a dramaturgia desse filme tanto parece adotar.
Tudo
isso faz pensar, mais que tudo, em como Scott utiliza tanto uma estética como
também uma mesma fórmula há 30 anos, a mesma que sufoca um Frank Lucas que tinha
tudo para ser bem potente como personagem mítico da rebeldia contra o sistema.
No universo de Ridley Scott, enfim, a subversão paga um preço alto, e o rebelde
Lucas prestará serviço à polícia da mesma forma que o rebelde replicante Rutger
Rauer morrerá em sua busca pela razão e verdade contra a história oficial mistificadora
em Blade Runner. O clássico Blade Runner, aliás, ilumina a catatonia
do cinema de Ridley Scott. Ali, em 1982, a cafonice da fotografia cumpria um papel
valioso numa história que se passava na Los Angeles de 2019, assim como a cenografia
“neo hi-artdéco-tech” e os tableau nem eram tão problemáticos – pelo menos
não num filme que emulava algo dos noir dos anos 40 fundido ao grand guignol
e tinha uma câmera meio embasbacada em mostrar a impecável direção de arte. Agora,
em O Gângster, temos outro “vilão”, com todas as aspas possíveis, lutando
desairosamente contra o sistema. Mas Frank Lucas, se não morre como o replicante
Roy Batty, é por outro lado afogado impiedosamente pelo projeto cinematográfico
de Ridley Scott. Em 1982, o drama de Batty era um tanto sufocado pelo excesso
de luz geométrica, chuva, trilha sonora medonha e pombinho voando pro além céu.
Já Lucas inexiste no frenesi intentado em O Gângter; ele é um personagem
destroçado, incompleto tanto como sujeito na diegese e quanto como símbolo de
um universo macro. Um natimorto, como têm sido todos os últimos longas rodados
por esse diretor britânico. Fevereiro 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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