in loco - cobertura dos festivais
O Gebo e a Sombra (Gebo et l'ombre),
de Manoel de Oliveira (Portugal/França,
2012)
por Raul Arthuso
Navegando
ao redor da sala
Depois de dois filmes siderantes - Singularidades de uma Rapariga
Loira e O Estranho Caso de Angélica
- o novo filme de Manoel de Oliveira, O Gebo e a Sombra,
poderia ser tomado como um retorno do mestre português a
um andamento mais sereno. Porém, sua serenidade seria sempre
um golpe de vista, pois a arte de Oliveira é a da inquietação
mais misteriosa do cinema nos últimos trinta anos. Em O
Gebo e a Sombra, as personagens são tomadas
também por uma inquietação atordoante em
seu claustro, atormentadas pela sombra que vive intimamente em
cada um. Por mais sereno que Gebo (Michael Lonsdale) seja durante
toda a projeção, há uma angústia que
o acompanha, muito por causa de um misterioso mal que atinge sua
esposa Doroteia (Claudia Cardinale) e o faz sempre desviar-se
para seu trabalho de contador. Esse sentimento misterioso de inquietação
explode em malaise na figura de João (Ricardo
Trêpa), filho pródigo cujo encerramento no seio da
família não pode conter seu coração
maior que o mundo.
As
personagens de O Gebo e a Sombra se confrontam com a
sombra, o mistério de si, e o Oliveira cultiva a tensão
desse mistério como motor da história. Este filme
é, em algum nível - assim como toda a obra de Oliveira
desde pelo menos Non ou a Vã Glória de Mandar
-, um acerto de contas com Portugal, não como nação,
mas como uma forma de (vi)ver o mundo. Ainda que se possa fazer
aproximações da questão da contabilidade
e do roubo de dinheiro com a atual situação econômica
precária do país, O Gebo e a Sombra não
é um acerto histórico-social ou um revisionismo
moralista, e sim uma forma de pensar a vida. Mesmo filmando em
francês, com parte do elenco não-português,
Oliveira guarda às personagens a identidade lusitana (como
indicam seus nomes: Gebo, Doroteia, Candidinha, Chamiço)
e o espírito saudosista que se manifesta no próprio
ato de contar: suas personagens adoram “prosear” coisas,
como uma forma de reaproximá-las da essência do mundo.
O Gebo... é um filme que se ouve francês,
mas se entende lusitano.
No
primeiro plano do filme, João está no cais, como
que chegando de uma viagem no navio atrás de si. Navegar:
eis o espírito lusitano em Manoel de Oliveira. Seu cinema
é uma navegação pela simplicidade, pela beleza,
pelo mistério, pela inquietude. Navegar por mares nunca
dantes navegados. Se muito da obra de Oliveira é uma
viagem em busca do princípio da incerteza, O Gebo e
a Sombra navega pelo único cômodo da casa desta
família cujos segredos e incertitudes são cavoucados
em ritmo lento e engenhoso, saboreando cada palavra e gesto dos
atores, permitindo que cada intenção das expressões
dos rostos e cada inflexão de palavra se revele. O cinema
de Oliveira tem se tornado progressivamente um processo de desprendimento
dos efeitos, lapidando sua poética numa economia franciscana
do plano (plano é tempo, segundo Daney), da montagem, do
ritmo da palavra e do gesto.
Por
outro lado, O Gebo e a Sombra é um conto moral,
que confirma Oliveira como um artista de profunda crença
numa pedagogia do cinema, alinhando-se, assim, a Charles Chaplin
e Eric Rohmer como cineastas da clareza e do essencial para trasmitir
um ensinamento. Não que o filme tenha uma moral da história
ou seja doutrinário. Oliveira lida aqui com questões
como o filho que não quer ser como seu pai que passa os
dias trancado em casa a fazer contas da riqueza dos outros, o
profundo sentimento de honestidade ligado a certa simplicidade
material, o élan do dinheiro, o amor que leva
à ruína. Se o cinema de Oliveira é uma navegação,
sua poética é uma forma de pensamento. Um filme
não é a vida, mas uma forma de chegar nela: o cinema
como forma de pensamento dá a ver algum conhecimento. Há
aqui uma moral da história; não há, porém,
um "eis a moral da história". A pedagogia de
Oliveira é uma busca: não cabem definições,
mas um desejo de saber (= viver). Sua mágica é olhar
direito.
Novembro de 2012
editoria@revistacinetica.com.br
|