O Hobbit: Uma Jornada Inesperada
(The Hobbit: An Unexpected Journey), de Peter Jackson (EUA, 2012)
por Pedro Henrique Ferreira
O
sentido da aventura
É notório que, quando começava a
realizar O Hobbit: Uma Jornada Inesperada, Peter Jackson
também participava da produção executiva
de um outro projeto de “aventura”. A parceria anterior
com Steven Spielberg não fora casual, e reflete duas carreiras
que se espelharam com talvez um intervalo de dez anos. Ambos os
diretores vieram de produções fantásticas
ou sci-fis de baixos orçamentos para se consagrarem
em longas-metragens milionários; se um foi dos principais
responsáveis pela reinvenção do sistema hollywoodiano
dos anos 1980 para cá, o outro, um pouco mais jovem (e
em sentido estritamente tecnológico, moderno), seguiu os
passos de Spielberg até que o próprio viesse a consultá-lo
para criar um “cão digital” e terminasse por
tê-lo como um parceiro em As Aventuras de Tintim
(2011). Não é à toa, portanto, que existam
flertes entre os dois filmes.
Ambos adquirem, inicialmente, um quê de autobiográfico.
O repórter de Spielberg compra uma maquete de um barco
por uma moeda, parte em uma jornada atrás do barco real,
e termina descobrindo um tesouro gigantesco. É uma espécie
de reiteração do que foi a carreira do diretor e
o desenvolvimento de uma faceta do cinema fantástico norte-americano
nos últimos trinta ou quarenta anos. Ora, mas se há
estes pequenos “quês” autobiográficos,
ambos os longas-metragens os utilizam como reflexões sobre
o próprio ato de “aventurar-se”, ou seja, sair
da zona de conforto e lançar-se à própria
sorte em um mundo perigoso, desconhecido, em nome de uma causa
qualquer. Spielberg omite as motivações pessoais
do repórter Tintim para empreender a jornada. Não
há crenças morais ou vontades políticas.
Ficamos apenas com seu gosto por mistérios, as suas pistas
e aventuras, seu vai-e-vem de um lado a outro, seu trajeto eterno
do micro ao macro, até o mais macro ainda. Tintim é
uma figura sem lar que move-se pelo eterno prazer de pôr-se
em risco. Mas mesmo este gosto que se quer tão autônomo,
qual a sua razão de ser?
O
Hobbit: Uma Jornada Inesperada parece começar justamente
na omissão crucial que torna possível alguém
como Tintim, sugerindo uma espécie de vínculo ou
diálogo: Bilbo Bolseiro (Martin Freeman) está em
sua toca no condado dos gnomos, vivendo o seu cotidiano pacato
quando, repentinamente, um mago lendário brota à
sua frente para lhe convocar à aventura. A adaptação
do primeiro ato da obra de Tolkien que antecede a trilogia do
Senhor dos Anéis traça o conflito interno
deste personagem-central em busca de uma crença ou causa
que possa justificar o abandono do lar e pôr-se em perigo,
gestos que para Tintim já eram dados desde sempre. Enquanto
um é o modelo perfeito e pronto de um aventureiro, o outro
está a se tornar um.
O
drama-motor de O Hobbit: Uma Jornada Inesperada é
justamente esta maneira singular como o ladino vai de um sentimento
misto de descrença (em si mesmo) e falta de vontade (de
sair da toca e se aventurar) até comprar uma briga milenar
que não é sua. Como o momento clímax do longa-metragem
expõe, metodicamente e com clareza, o pequeno hobbit se
mete no meio do ódio mútuo, irreversível,
sedento por vingança, entre o rei dos anões que
perdeu um pai e o rei dos orcs que perdeu o braço. O ladino
escolhe um dos lados, simpatiza-se com um dos dramas, e vai aliar-se
a quem, diferentemente dele, “perdeu sua casa”. Ideologicamente,
é um gesto de escolher o bem e o mal – ao invés
de buscar uma conciliação, a incumbência de
fortalecer um dos lados para sobrepor-se ao outro, justificado
por um sentimento de complacência. Ao mesmo tempo, é
o encontro com a própria vocação, a criação
de um herói que descobre-se um eleito.
Há
inúmeros fantasmas e desejos reprimidos na história
das guerras no século XX, por exemplo, que rondam um drama
desta natureza - os quais o filme articula e galvaniza mais do
que põe em debate; exprime e anima mais do que desenvolve
de maneira mais elaborada. Mas os principais problemas de O
Hobbit não estão somente na forma simples e
perniciosa como entende o que é o heroísmo, a guerra
e a aventura – não estão somente em uma esfera
política daquilo que propaga. O espectador em quem Jackson
investe já está habituado àquele universo
transposto em imagens na trilogia Senhor dos Anéis,
ou ao menos já conhece o mundo da Terra Média. Assim
como Guerra nas Estrelas – A Ameaça Fantasma,
o filme se apoia no que já está consagrado, sem
a preocupação de fazer deste novo longa-metragem
um desenvolvimento ou extensão. O autor parte de um conjunto
de premissas exteriores à obra, que a antecedem, para dilatar
a trama. A rigor, não há progresso em relação
a nada. O exercício é, por exemplo, criar longuíssimas
sequências de tensão baseadas na esquizofrenia de
Sméagol, que não se justificam para além
da vontade de pôr em cena este antagonista que já
conhecemos. Ou criar comédia em cima de anões comilões
e grosseiros.
Grosso
modo, O Hobbit: Uma Jornada Inesperada se aceita menos
como uma amplificação ou síntese e mais como
uma mera revisitação a um local que conhecemos,
e que veremos com a mesma saudade com que olhamos os fantoches
no sótão da vovó (e que curiosa esta nostalgia
que tem pouco mais de 10 anos!). É menos um filme e mais
um evento (e, não à toa, nada mais que o primeiro
ato de três), que revela o quanto a empreitada nasce como
um perigoso projeto de marketing, um produto para satisfazer quem
um dia se comoveu, quem um dia se deslumbrou com uma fantasia.
O Hobbit, porém, pouco se preocupa em refazer
a comoção ou o deslumbramento. Ao fundo, está
apenas a exploração de uma nostalgia, algo cada
vez mais frequente nas franquias de Hollywood e suas eternas sequels.
Prevalece a utilização de tecnologias de ponta (agora
o 48fps), mas que, com poucas exceções (Cameron,
Bird, e outros nomes vêm à mente), criam os mesmos
objetos. Com novas ferramentas, revisitamos o velho mundo. Saímos
da trama, que a todo momento versa sobre o ato de se aventurar,
com a sensação de que em momento algum realmente
nos aventuramos.
Janeiro de 2013
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