O Homem que Não Dormia, de Edgard Navarro (Brasil, 2011)
por Fabian Cantieri

Zeitgeist fabular

Se Deus existe, então Ele nos criou com o direito de desconfiar. E duvidamos felizes, quando desesperados, questionadores que somos de tantos porquês, ao nos situar num inevitável embate à metafísica, mundanos de tanta estrada. Edgard Navarro, no alto de sua experiência como velho vivão dessa terra, tempesteia suas crises junguianas num caldeirão mítico de figuras marcantes que, juntas, delineiam um sistema simbólico raro numa belíssima ode à criação. A vida é feita de ilusão, diria um santeiro milagreiro de uma das músicas dos créditos finais, a partir da hora em que voltamos nossa atenção à creatio ex nihilo, pois ante o nada, a saída é a invocação de algo imaterial e irracional. Acontece desde os deuses gregos. Daí, como todos sabemos, além das mil perguntas, nasce a religião e a questão da fé. Em O Homem que Não Dormia, o que vemos antes de tudo (e paradoxalmente a partir da pergunta-chave “se Deus existe”) é uma fé absoluta na confabulação, no sentido literal de entreter-se narrando fábulas, inventando histórias e relações entre histórias. É se ver no poder de diretor e perceber que, ante a imobilidade da dúvida (cartesiana ou não, cristã ou não) e a ineficiência teológica para com a completude pessoal, melhor fugir de promessas e se assumir como o demiurgo de uma cultura popular, nova como filme, complementar como processo da história brasileira.

Sendo frio e pragmático, “criar”, qualquer filme o faz; a diferença aqui, além da exultante celebração do próprio ato de fabulação, que impulsiona uma descompromissada alegria latente, é seu diálogo de profunda intimidade com certas raízes do Brasil. Não basta jogar um saci aqui e falar diante de uma fogueira da mula sem cabeça ali. Navarro vai muito além da pincelada folclórica ao explorar correspondências entre mitos cinematográficos, lendas populares e entidades religiosas, proporcionando um inusitado zeitgeist de um espaço contemporâneo. Consciente de seu tempo, vai do enfrentamento cristão à alegoria glauberiana e dali conflagra um projeto político de imensa virulência, mas que por muito se escaldou em burros n’água – literalmente o plano de Pra Frente Brasil (Ramon Vane) vociferando aos bois e vacas – “eu sou a voz de quem clama no deserto”.

Mas sem acreditar, como Walter Salles, ali à altura de Terra Estrangeira, que a solução era sair do país, Navarro se veste com os uniformes da marinha do navio encalhado e troça de sua (nossa) condição. É por isso que volta a Glauber, não como referência trôpega, mas como re-organização encarnada de um novo período vigente. Daí vem o mesmo teatro da ação, mas também a cidade pequena (no lugar do sertão) acrescida de seu cotidiano, os temas religiosos e políticos configurados por arquétipos e mitos de um inconsciente coletivo (já não mais como Glauber, mas como Jung) onde ainda sobra espaço para figuras de Jorge Amado (Dona Flor e seus dois maridos), ao colonialista americano (no lugar do grito anti-imperialista, o ridículo Pentecostal).

Contudo, o que provavelmente é a transformação radical desse passo cinema-novista-pós-retomada é a incapacidade das personagens, nas palavras de Ismail Xavier, de “se colocarem como condensações da experiência de grupos, classes, nações” a partir do momento que o arcabouço fílmico é germinado por um impulso filosófico existencial - e isso resplandece em cada personagem que divide o sonho delirante do tesouro do barão. O Homem que Não Dormia, ao desenhar uma personagem que não dorme (também não o vemos comer, nem beber, só andar, andar e andar o que indica uma aparente perda metafórica de seus interstícios carnais) e “nem deixa os outros dormir”, revolve em última instância, ao que o próprio título indica, a um questionamento sobre a morte e sua naturais inflexões recorrentes: “só existe um tesouro nessa vida: é a vida da gente”. Como se fosse um jogo pirata de caça ao tesouro, procuramos, sem cessar, o tal do baú, mesmo sem saber o que há lá dentro. E nessa busca solitária, morre o ensejo coletivo de Glauber.

Na inesquecível cena-chave do filme, o judeu errante, fariseu e aldebarão (junção de barão com aldebaran – estrela taurina que em sua origem árabe significa “aquele que segue”) se depara com uma árvore onde roga por um anjo ou mensageiro. Mensageiro mais significativo no cinema brasileiro que Glauber não há, e eis que surge, naquela imemorial “esquina do tempo”, Pra Frente Brasil confrontando Me Esqueci (Luiz Paulino dos Santos e não à toa, o demiurgo em pessoa, Edgard Navarro), que falava até demais mas agora não se alembra, comoum Jesus Cristo amputado de seus poderes, diante das folhas outonais que caem implacáveis, diante do inexorável escorrer do tempo. Enquanto a Igreja (seja ela de qual ordem) esquece e vem sendo esquecida, o povo brasileiro em igual proporção vem “se lascando, se arrombando, se fudendo”. Ao esquecermos a Igreja e tirarmos os olhos do chão, Pra Frente Brasil nos incita a olhar para cima, onde, no lugar do divino, temos a luz “que é maior que tudo que existe nesse mundo”, matéria-prima contundente da criação cinematográfica – lugar, onde “os olhos de chupa-cabras” de Me Esqueci “não têm nenhum poder”. Luz que nos alumia e cega.

E é enquanto cego que o padre Lucas (Bertrand Duarte) tem sua epifania de um anima mundi. Navarro depositando sua fé agnóstica em Jung; como ele, acredita que fora do unus mundus, fora de uma potência energética pré-Genesis, uma nova criação é possível. Assim se esbalda e vai à forra. Cria um horizonte satírico-pornográfico, sem limites a qualquer moral, com uma energia voluptuosa e jovial (juventude de espírito e não uma juventude que enlouquece sozinha ou mija no caixão dos outros) que pulsa plano-a-plano um fulgor tão vital quanto viciante. Como Albert Lamorisse o ensinou, bom mesmo é se encantar à altura do céu.

Dezembro de 2011

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