in loco - cobertura dos festivais
Era
Uma Vez na Anatólia (Bir Zamanlar Anadolu'da),
de Nuri Bilge Ceylan (Turquia/Bósnia-Herzegovina, 2011)
por Raul Arthuso
A
simples arte de narrar
Uma chave para entender a grande potência de Era Uma
Vez na Anatólia está no próprio título
do filme (cuja tradução foi literal para o português).
O “era uma vez” ecoa o exercício da narração:
é assim que, popularmente, ficou marcado o início
de uma história, seja nas anedotas ou nos contos de fadas.
A expressão remete, em essência, à oralidade
das histórias e ao caráter de “experiência”
de uma narrativa como algo que se transmite de geração
em geração. Há, então, o desejo de
narrar uma experiência, no sentido de algo vivido, sentido
e assimilado que deve-se passar ao outro.
Por outro lado, o título
se assemelha a um clássico do cinema, o Era Uma Vez
no Oeste, de Sergio Leone, compartilhando também o
contar uma história, cuja especificidade está ligada
ao lugar onde as personagens interagem. Assim, Era Uma Vez
na Anatólia é movido por esse desejo do contar,
a começar pela trama policial do filme: achar o lugar onde
está enterrado o corpo da vítima de um assassinato.
Alguns policiais, o pessoal da promotoria, um médico e
os assassinos percorrem os campos de uma cidade tentando
lembrar o local do crime. Porém, essa trama-motor do filme
é muito simples, e não repleta de viradas como se
espera de uma trama policial convencional. O desejo de contar
do filme se manifesta, por isso mesmo, nas personagens: como muitas
das cenas se passam em carros ou à espera de alguma coisa,
as pessoas interagem contando histórias: casos de seu passado,
especulando sobre uma possível doença de próstata
do promotor, o policial lamentando sua vida dizendo que não
agüenta mais tantas mazelas, o promotor pedindo conselhos
sobre um caso passado. Daí sai muita da graça de
Era Uma Vez na Anatólia, pois há uma dupla
conjunção de satisfações no filme:
a das personagens que, se não demonstram prazer enquanto
falam, parecem aliviar suas mágoas enquanto relatam o que
se passa em suas cabeças ou suas antigas experiências;
e a do próprio diretor, que demonstra um prazer em colocar
os atores no espaço e enquadrá-las, observar as
manias e modos de interação das personagens quando
conversam, transitar entre momentos de frustração
e dor (principalmente, nas falas do policial, que quer a qualquer
custo que o assassino apodreça na cadeia) para momentos
de troça e humor plenos, como na seqüência em
que se compara a aparência do promotor com a do ator Clark
Gable.
Essa
interação entre as personagens e uma transição
tão precisa de moods pareciam impossíveis
ao Nuri Bilge Ceylan de Climas e 3 Macacos,
onde as personagens eram quase zumbis, numa incomunicabilidade
forçada que servia ao conjunto de clichês do "cinema
de arte": atuações pesarosas, personagens que
não falavam, efeitos fotográficos que adensavam
a imagem (nuvem negra, cor dessaturada), extensos planos vazios
- mas um drama mais próximo da novela mexicana que do "existencialismo"
de Antonioni. Era Uma Vez na Anatólia é
o oposto disso. Suas personagens são de carne viva, pulsam
em questões existenciais que versam, em geral, com o trabalho,
as relações amorosas, a humanidade, negando assim
uma certa metafísica que parecia reger o mundo sensível,
principalmente em 3 Macacos. A simplicidade das condições
do lugar contaminam a narrativa, que se faz do contato direto
da câmera com os atores e do puro ritmo das atuações
a partir das acelerações e freadas das falas, das
pausas dos olhares, da observação dos gestos. Da
vontade desenfreada de falar das personagens, Era Uma Vez
na Anatólia é contaminado pelo prazer da simples
arte de narrar.
Novembro de 2011
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