emulando

Sympathy for Godard
Ensaios do mundo - Parte 2
por Andre Brasil

One Plus One, de Jean-Luc Godard (Inglaterra, 1968)

“Pleased to meet you
Hope you guessed my name
But what’s puzzling you
Is the nature of my game.”
(Rolling Stones)

“Waiting on the beach for uncle Mao's yellow submarine to come and get me."
(Voz off em One plus One, Godard)

Em 1968, Jean-Luc Godard está em Londres, convidado a realizar um filme sobre a legalização do aborto. Obrigado a mudar de planos, já que o aborto foi legalizado na Inglaterra antes do início das filmagens, o diretor convence os produtores a investirem em seu novo projeto: um filme com a participação dos Beatles e dos Rolling Stones. Estes últimos, admiradores da obra de Godard, aceitam participar. Os desdobramentos da experiência entre os enfants terribles são conhecidos. Godard produziu um filme polifônico, à sua maneira, político: enquanto os Stones ensaiam a música Sympathy for the devil, segmentos narrativos atravessam a performance, fundindo o universo pop aos discursos ideológicos à esquerda e à direita.

Um incidente com os produtores Michael Pearson e Iain Quarrier, no entanto, fará com que a obra se desdobre em duas. Em uma “sutil” estratégia de marketing, os produtores lançam uma versão ligeiramente diferente do corte do diretor. Nela, após os ensaios, o arranjo final da música dos Stones é apresentado completo ao fundo de uma imagem com interferências cromáticas. A esta versão, os produtores deram o nome de Sympathy for the devil. Diferentemente, na versão do diretor, segmentos da performance dos Stones se repetem e se entrecortam, sem que o arranjo final da música seja apresentado em sua totalidade ao espectador. No dia do lançamento do filme, Godard entra na sala de exibição, insulta os produtores e convoca o público a assistir sua versão – esta sim, One plus one – que seria projetada naquele mesmo horário em outro local.

O incidente, que pode ser visto como mais um folclore em torno da figura do diretor, nos parece revelar muito mais do que isso: ele sugere a própria dimensão política do filme. A política, nesse caso, se explicita na diferença, aparentemente irrisória, entre as duas versões: de um lado, Sympathy for the devil, um filme pronto, acabado, centrado no sucesso de uma banda pop, que se encerra com uma espécie de videoclipe da música. De outro lado, One plus one, uma obra inacabada, uma performance que, em sua eventualidade, se repete e se interrompe, permanecendo em aberto. De um lado, a obra, o produto; de outro, o processo, o ensaio de uma música, o ensaio de um filme. Somente a segunda versão poderia nos remeter, mesmo que de forma enviesada, às História(s) do Cinema, série realizada trinta anos depois por Godard, que levaria o pensamento ao limite do ensaio.

1968: ano (em) que se ensaia

One plus one é um filme-ensaio. Considerá-lo como tal não se faz de maneira confortável. Iniciemos simplesmente assim: ele é um ensaio na medida em que improvisa um pensamento. Como em vários de seus filmes, o pensamento de Godard ali é puro ato, ele se pensa no momento mesmo em que se cria. Ele não se produz a partir de um argumento fechado, ou de um roteiro que o determinaria a priori, mas por meio de uma articulação instável e precária de vozes, de citações, de pequenos experimentos narrativos.

O filme se inicia com a performance dos Stones em um estúdio, por onde a câmera passeia lentamente. Os músicos ensaiam: repetem trechos da música, experimentando os vários arranjos possíveis. Entre as repetições, Godard insere pequenas narrativas “ficcionais”, de viés pop-político: em um ferro-velho, empilhado de Chryslers e Oldsmobiles, integrantes dos Black Panthers gravam textos poéticos e revolucionários, enquanto empunham armas e performam com mulheres brancas; em uma livraria cheia de revistas pornô, os consumidores escolhem os livros, recebem um panfleto político e fazem a saudação nazista para sair com as mercadorias. Vez ou outra, estapeiam dois hippies que esperam em um canto da loja. As cenas são ainda entrecortadas por uma voz off que lê narrativas de tom erótico, povoadas de celebridades e personalidades políticas.

Eve Democracy, personagem representada por Anne Wiazemsky, picha slogans irônico-poéticos em muros, janelas, carros e outdoors: cinemarxism, freudemocracy, sovietcongs... em uma bela cena do filme, ela é entrevistada por uma equipe de reportagem, em um bosque. As perguntas versam sobre política, sexualidade, cultura e, diante delas, a personagem responde simplesmente “sim” ou “não”. “O seu sobrenome é República? Totalitarismo? Liberalismo? Sindicalismo?” “Não.” “Democracia?” “Sim.” “Você se sente explorada quando responde a uma entrevista?” “Sim.” “Um homem de cultura é tão distante da arte quanto um historiador o é da ação?” “Sim.” E, após, uma série de perguntas, finalmente: “Não há outra maneira de ser um intelectual revolucionário a não ser deixar de ser intelectual?”

Uma possível resposta a esta pergunta pode se vislumbrar no próprio filme de Godard. Ali, trata-se de revolucionar o intelecto por meio das mãos: pensamento e experiência, potência e ato se fundem em uma escritura polifônica, aberta, heterogênea, inacabada. Nela o pensamento não se dissocia do fazer, na medida em que ele se ensaia. Poderíamos arriscar a dizer que One plus one é um filme-ensaio que condensa o próprio pensamento do ano que o gestou, 1968. Mais do que isso, a obra mostra a visão que Godard constrói deste ano-ensaio, ano contraditório, polifônico, cujo desenvolvimento não nos leva a um termo, não nos permite formar uma totalidade ou um sistema senão aberto.

A repetição como possibilidade

Um procedimento fundamental em One plus one é a repetição. Sympathy for the devil – a música – se repete. Elíptica, a câmera passeia por um estúdio de divisórias coloridas. A cada repetição, um acréscimo, uma mudança de velocidade, uma difração. A cada repetição, uma interrupção para que um novo segmento narrativo se acrescente.

Em um texto sobre a obra de Guy Debord e, indiretamente, sobre História(s) do Cinema, de Godard, o filósofo italiano Giorgio Agamben nos esclarece sobre esse recurso que, para ele, é a condição de possibilidade do cinema. A repetição, nos diz, é o procedimento por meio do qual o passado se torna novamente possível. Ou seja, pela repetição, o passado pode retornar como diferença, como reinvenção. O cinema se faz, assim, em uma zona de indistinção que, por meio da repetição das imagens, transforma o real em possível e o possível em real. Ele faz então o contrário do que fazem as mídias. “Estas nos dão sempre o fato, o que foi, sem a sua possibilidade, sem a sua potência, nos dão, portanto, um fato sobre o qual somos impotentes. As mídias adoram o cidadão indignado, mas impotente”.

A repetição é o procedimento do cinema, mas também da literatura, já que a matéria-prima de ambos é a memória, ou melhor, a rememoração. Agamben, leitor e tradutor de Benjamin, avança para concluir que essa é a base de uma definição do que seja a história: aquilo que permite ao passado, continuamente, se repetir, mas como rememoração, como recriação e reinvenção. Não seria esta, então, a perspectiva que estaria na base da criação de Godard e que liga One plus One às História(s) do Cinema? Afinal, ali as imagens da história formam menos uma sucessão linear de acontecimentos do que fulgurações da memória que retornam, se suspendem, se repetem, recriadas pelo pensamento ensaístico do diretor. A cada repetição, é toda a história do cinema que se torna novamente possível.

O filme-ensaio de Godard nos leva a pensar a história como esse processo contínuo de rememoração, em que o passado retorna, não como fato, mas como abertura, imprevisibilidade e indeterminação. Nesse sentido, o ano de 1968 é parte da história: ele se liga a um processo histórico que o ultrapassa. Como se o ano fosse um momento fulgurante que condensa um movimento que se inicia muito antes e que continua para além dele. Se há uma lição deixada por esse período é justamente essa: a perspectiva de uma história experimental, uma história que se ensaia, que se repete, que fulgura, mas que permanece aberta, inacabada. Sessenta e oito é, como vimos, um ano que se compõe de vozes múltiplas e, muitas vezes, contraditórias, algumas libertárias, outras doutrinárias. Em suas contradições, o período nos coloca em contato com a potência do que costumamos chamar modernidade, nos coloca diante de seu inacabamento, de sua precariedade histórica. Nesse sentido, essa produção menor, periférica, muitas vezes incompreendida pelo discurso científico ou mesmo literário, essa produção “inadequada” e ambígua que é o ensaio pode ser vista, na verdade, como a forma mais adequada para abrigar um pensamento que se queira moderno: aquele que permanece e se reconhece aberto, inacabado.

Mas, atenção. Diante deste inacabamento, diante da história como processo arriscado, ensaístico, podemos recair no pólo oposto: fazer da abertura, uma totalidade; do precário, um produto; fazer do processo, uma obra, e do trabalho, uma mercadoria. Nesse sentido, podemos nos perguntar: o que se fez de 1968? Uma parte dos discursos libertários desse período permaneceu aberta, ainda por se inventar. Outra parte, foi encerrada em sistemas fechados, em um capitalismo visto como fim da história: ela foi incorporada às marcas, às mercadorias, aos softwares, às estratégias de recursos humanos das empresas. Algumas vezes, hoje, parecemos agir como os produtores que transformaram One plus one em Sympathy for the devil: a diferença entre uma versão e outra, repetimos, é quase irrisória, mas pode transformar a abertura da história em produto acabado, destinado à simples satisfação dos clientes.

Talvez, resida aí a necessidade do ensaio, seja na literatura, na filosofia, seja no cinema: manter aberto o que a história nos abre. Fazer da história menos fato do que potência.

Outubro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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