in loco - cobertura dos festivais
O Que se Move, de Caetano Gotardo
(Brasil, 2012)
por Filipe Furtado
A presença na tragédia
Tragédia: substantivo feminino. 1. Na antiga Grécia,
peça em verso, de forma ao mesmo tempo dramática
e lírica, na qual figuram personagens ilustres ou heroicos
e em que a ação, elevada, nobre e própria
para suscitar o terror e a piedade, termina geralmente por um
acontecimento funesto; 2. Peça, geralmente em verso, cuja
ação termina de ordinário por acontecimentos
fatais; 3. O gênero trágico 4. A arte de representar
ou fazer tragédias; 5. Ocorrência ou acontecimento
funesto que desperta piedade ou horror; catástrofe, desgraça,
infortúnio.
Cinema
é uma arte da presença. Ele te coloca com maior
propriedade do que qualquer outra arte em contato direto com a
experiência de outra pessoa. Há, é claro,
muitos filmes sobre o não dito, mas seu impacto na maior
parte das vezes se dá no que revela. Este primeiro longa
do Caetano Gotardo é muito consciente destas premissas,
usando-as, com muito tato, como aliadas na sua construção.
Em jogo neste O Que se Move está justamente a
necessidade de pegar uma série de ausências e proceder
em preenchê-las. Tirar delas este status, devolvê-las
a presença. Se boa parte do cinema contemporâneo
frequentemente trabalha no sentido oposto, realizando uma verdadeira
crônica do desaparecimento, o filme de Gotardo procura justamente
realizar uma crônica do preenchimento: colocar a câmera
diante de uma série de rostos e permitir que eles existam
na sua plenitude, permitir que estes rostos neguem o vazio da
perda.
De começo, há a tragédia. Caetano Gotardo
localizou três histórias, todas partindo de fait
divers que leu em jornais, todos centrados nesta ausência
e envolvendo a relação de mães e filhos (este
tema tão naturalmente dado ao melodrama). Do trágico
inicial, porém, Caetano Gotardo localiza tudo o que fica,
e não o que se perde. Busca desmontar o drama não
por anestesiar a dor (problema de muitos filmes recentes que lidam
com temática parecida), mas ao se focar justamente nos
rastros de cada um destes desaparecimentos súbitos. Do
que poderia ser um jogo frio e funesto a partir da desgraça
alheia, O Que se Move procura uma expressão firme
de resistência. O cinema permite que as coisas fiquem à
sua maneira, o filme está sempre a nos lembrar.
Já
no primeiro episodio, as premissas centrais de O que se Move
ficam claras na opção por centrar o último
dia não sobre a figura da mãe, mas sobre o filho
prestes a optar pelo desaparecimento no lugar da explicação.
Ele não faz nada de muito relevante neste último
dia – que é também seu último dia de
férias – mas a câmera segue sempre próximo
a ele, garantindo que permaneça junto ao espectador - para
que na altura do desenlace da história ele nos signifique
mais do que a explicação rápida de uma morte
num jornal sugeriria. Em particular, há duas sequências
no começo e no final, em que ele tem conversas banais com
a mãe (sobre acordar e sobre lavar a louça), nas
quais o filme, de forma muito econômica, preenche toda uma
relação que garante que a emoção final
da mãe ganhe uma força maior.
O diretor demonstra uma facilidade muito grande com o registro
do casual. As duas melhores sequências de O Que se Move
mostram pouco mais que famílias à beira da mesa.
A primeira delas é completamente desdramatizada, conversa
jogada fora como em mil outros jantares que aquelas quatro pessoas
realizaram antes (mas com a consciência do espectador o
tempo todo de que se trata do último); na outra, justamente
o drama está em primeiro plano, e a conversa pequena segue
para disfarçar um desconforto doloroso presente em cada
um daqueles ali sentados, com a câmera fechada sobre o rosto
do garoto acuado que representa tantas coisas diferentes para
as diversas vozes que ouvimos no fora de campo. O Que se Move
se revela também um filme de grande imaginação,
sempre pronto a preencher suas situações com personagens
e gestos que, no lugar de fecharem o drama em si mesmo, buscam
expandi-lo - como a genial figura do colega de trabalho do pai
do segundo episódio, que, ao perceber que o amigo está
mal, busca maneiras de desarmar o papo sério, não
se comprometer com aquele drama. É impressionante como,
em um filme todo construído sobre estados emocionais tão
fortes, o diretor dê vazão com tanta frequências
a estes momentos de conversa pequena que estão entre os
mais memoráveis do cinema brasileiro recente.
Não
que O Que se Move seja um filme perfeito. Por vezes ele
parece mal resolvido no desejo de abarcar varias referências
do diretor, em outros momentos a tentativa de encontrar certa
leveza nas situações (como na visita ao parque)
resvala em uma afetação que fragiliza um pouco o
belo equilíbrio dramático que o filme sustenta na
maior parte da sua duração. É um excesso
desnecessário, dada a clareza que o filme encontra em sua
maior parte. Nos seus melhores momentos, O Que se Move
consegue justamente pegar a definição banal do trágico
presente na noticia de jornal – principalmente nesta lógica
cruel do fait divers tacanho, em que a desgraça
alheia é reduzida a momento de interesse passageiro e descartável
– e devolve a ela, através da força da presença
cinematográfica, seu sentido original. Cada um dos três
episódios do filme conclui com um número musical
protagonizado por uma das três mães (com letras do
cineasta muito bem musicadas por Marco Dutra e interpretadas com
ainda mais força por Cida Moreira, Andrea Marquee e Fernanda
Vianna, parceiras essenciais de tudo que Gotardo procura atingir
com seu filme), e neles o filme se resolve e encontra todo o sentido
e emoção que procura. A presença cinematográfica
redefine a tragédia.
Outubro de 2012
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