Os
Estranhos (The Strangers), de Bryan Bertino (EUA, 2008) por
Fábio Andrade Sobre
o natural
Conhecemos
James (Scott Speedman) e Kristen (Liv Tyler, em um de seus melhores trabalhos)
em um momento delicado, quando estão retornando à casa de veraneio dos pais de
James após uma festa de casamento. Os cômodos estão cobertos com pétalas de rosas,
mas o romantismo não encontra resposta no constrangimento que separa o casal.
Essa distância ganhará corpo em uma série de intermitentes flashbacks:
ao sair da festa, James pedira Kristen em casamento; ela recusara. Sem saber como
proceder diante do inesperado, o casal segue a rotina da noite planejada por James,
aproveitando os restos de uma festa que não chegara a começar. O que poderia parecer
um mero nariz de cera, aos poucos se estabelece como coração da narrativa: antes
de uma estória de horror, estamos diante de uma estória de amor. Amor pregresso,
de fato, pois Os Estranhos é um filme sobre a ruína involuntária de uma
prática desse sentimento; sobre o momento em que uma mulher percebe a transformação
de seu afeto. É
nessa grande introdução, portanto, que o diretor Bryan Bertino define os caminhos
de sua narrativa, por uma construção de cena precisa e dedicada. Não há, apenas,
uma casa, mas sim uma idéia de lar; visto pelos olhos de Kristen, o conceito familiar
de James é adornado pela história de décadas que ela desconhece. Estão lá as marcações
do crescimento dos irmãos na parede, mas também os objetos de cena que, por um
momento, fazem o espectador crer estar diante de um filme de época. Uma velha
e robusta casa de verão, e uma vitrola. A vitrola é essencial, pois será uma das
ferramentas usadas com maior propriedade por Bertino. O primeiro recorte que ela
determina é temporal: as canções tocadas na vitrola são, quase todas, contemporâneas.
Como os celulares e os carros modernos, são símbolos de uma época que não encontram
lugar naquele espaço de décadas passadas. Mais que isso, são músicas que flertam
com uma tradição cultural norte-americana muito bem determinada (em geral, passeando
pelo country e o folk), contaminando o ambiente com uma atmosfera envelhecida,
datada em reinterpretação. Esse
movimento é tanto estilístico – pois a idéia de que o cinema de Bertino seria
um correspondente da atualização de gênero do alt-country é aproximação
bastante precisa – quanto diegético, pois a vitrola funciona como comentário,
como coro grego que interpreta a ação. Esse comentário, por sua vez, é tanto expressionista
– externando o olhar de Kristen diante de um projeto de futuro que flutua entre
o passado e o presente – quanto literal. Quando o silêncio que separa James de Kristen esvazia o ambiente de
significados, ouvimos Jeff Tweedy cantar as palavras de Woody Guthrie: Will
you find another sweetheart / In some far and distant land? /
Sad and lonely now I wonder / If our boat will ever land. Quando Kristen está sozinha em casa, e tem a curiosidade
alimentada pelos barulhos do lado de fora, Joanna Newson canta: Should we go
outside? Embora
a redução de elementos coloque Os Estranhos em um folgado plano metafórico
(o conforto de um casal rondado por projeções mascaradas sobre um mundo desconhecido),
existe uma opção de direção que torna essa relação mais complexa: a câmera no
ombro. Esse pequeno e constante detalhe (tirados alguns poucos planos em steadicam)
problematiza a compartimentação de Os Estranhos, pois ao mesmo tempo em
que ele é tomado por um desejo metafórico que o retira do gênero em que ele aparentemente
se insere, existe também essa busca por naturalidade que, ao trazer tudo para
um mesmo plano físico, não condiz com a construção puramente alegórica. A câmera
no ombro é uma evidência de um jogo de camadas constante e complexo, pois o sobrenatural
só poderá se manifestar em um ambiente construído com extrema naturalidade. Há,
com isso, um incômodo maior naqueles rostos mascarados que entram e saem por portas
fechadas, pois eles invadem um registro que parece não permitir essa volatilidade.
As portas são portas. Para alguém entrar, é preciso que elas sejam abertas. Esse
jogo de camadas é o que faz de Os Estranhos um filme tão instigante, pois
aos poucos corporifica desejos que, em um primeiro momento, têm presença rarefeita.
Um pedido de casamento negado inicia um processo de inevitável aceitação de um
sentimento em beco sem saída, que em princípio é mascarado, mas que eventualmente
deitará as máscaras, mostrando o rosto apenas o suficiente (pois a individualização
não é importante) para se afirmar como concreto, real e autônomo. O título parece
se referir menos aos mascarados, do lado de fora, do que à percepção de alguém
próximo – uma pessoa ou sentimento – antes tido como familiar, agora percebido
como estranho. As velhas questões serão superadas na seqüência do esfaqueamento,
em que Kristen diz a James que o ama enquanto ele é assassinado. Há um amor, mas
um amor passado; um amor absolutamente real e verdadeiro, mas que precisa ser
morto em sua velha encarnação. Não à toa, o filme termina da única maneira que
poderia terminar: Kristen gritando, recém-nascida. Gritando pelas dores da transformação,
mas, principalmente, por, ao fim da noite, continuar viva. É
uma feliz coincidência ver e escrever, em uma mesma semana, sobre bichos tão radicalmente
opostos quanto [REC], de Jaime Balagueró e Paco Plaza, e
este Os Estranhos, trabalho de estréia de Bertino. Se a comparação implica
em uma forma de defesa, é preciso deixar claro que ela não vem do conservadorismo
de olhos ranzinzas que preferem, necessariamente, um filme que, aparentemente,
se inscreve em uma tradição de gênero a um produto assumidamente marqueteiro,
que trabalha a partir de dispositivos contemporâneos. A defesa vem, sim, pela
maneira como ambos trabalham os repertórios de convenções que adotam como ponto
de partida. Pois se Balagueró e Plaza se aventuram em uma desastrada roleta-russa
de falsas eficiências, é notável como Bertino trabalha a partir de armações que
ele conhece e controla muito bem, e o faz sem tintas revisionistas que encerrem
Os Estranhos na mera referencialidade. Se há, portanto, defesa a ser feita,
ela não é uma defesa de projetos, mas sim da maneira que seus diretores os transformam
em filmes. Novembro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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