in loco - cobertura dos festivais
O Sol nos Meus Olhos,
de Flora Dias e Juruna Mallon
(Brasil, 2013)
por Raul Arthuso

Moeda forte

Na primeira cena de O Sol nos Meus Olhos, um homem chega em casa com algumas compras de supermercado. Enquanto as tira lentamente das sacolas, fala com a esposa, supostamente fora de quadro, sem obter resposta. Ao ir até o quarto, encontra a mulher caída no chão, morta. Então, ele realiza a única ação abrupta do filme: coloca o corpo da esposa numa mala e sai para uma viagem – certamente existencial, puramente uma viagem.

Esse ato inicial de O Sol nos meus Olhos não apenas é estopim desse road movie existencial – e qual road movie tende a não ser existencial? – como é também o único momento de plenitude do protagonista. Toda sua trajetória será marcada a partir de então por uma interrupção dos gestos, das vontades, das interações: ele pára o carro, mas permanece absorto na porta, sem conseguir sair do veículo, até que alguém interrompe seu torpor; instantes depois, tenta fazer uma refeição, mas não consegue comer senão a primeira garfada, tomado por um assombro; uma ligação telefônica termina com um vômito, como se a impossibilidade de comunicação o tivesse atingido fisicamente, mas mesmo este vômito não é mais que uma golfada pouco impressionante. Até mesmo a viagem enquanto partida e chegada é interditada ao personagem, que no meio da estrada parece não saber o que faz e onde vai.

Se em nenhum momento sua reação abrupta cabe ao entendimento, há um peso trágico somatizado na figura do protagonista – a mala que ele carrega não contém apenas o corpo da esposa morta, mas a tragédia de uma vida interditada em seus mais pueris aspectos. Não lhe é mais permitido nem mesmo essa vida. O Sol nos Meus Olhos é, então, quase um romance de formação, ou melhor, re-formação: a busca desse homem é um duplo movimento de esvaziamento de si e despojamento dessa vida interrompida numa tentativa de substituí-la por uma nova possibilidade de experiência. A habilidade de Flora Dias e Juruna Mallon está em entremear certa rarefação dramática corrente com momentos em que o protagonista interpela pessoas na rua, cenas quase documentais, ao estilo do personagem de Paulo César Peréio em Iracema – uma Transa Amazônica, como a marcar muito bem esses dois movimentos – deslocamento/despojamento; parada/re-formação. A viagem, o carro, a estrada, tudo isso esvazia; o contato com o outro preenche, ou pelo menos cria uma identificação.

Em meu texto à época do lançamento de Estrada para Ythaca na Sessão Vitrine, atentava para o fato de, na política do filme, imperar um prazer pela encruzilhada, algo que se percebe na extrema rarefação dramática em que os quatro personagens viravam mera mediação, um conjunto arquitetado sem individualidades, ou melhor, onde essas individualidades desaparecem ao longo do caminho. Essa rarefação ao longo da estrada também é bastante sensível aqui em O Sol nos Meus Olhos. Mais que personagem, o protagonista é um mediador das sensações e das experiências dessa viagem. Se há uma intensidade possível no filme, ela passa pelo corpo e a expressividade do ator Rômulo Braga (algo já perceptível em seu trabalho no recente O Que se Move, de Caetano Gotardo, em que um longuíssimo plano de seu rosto expressa toda sua a dor espiritual). Inclusive chama a atenção os dois momentos em que o filme é mais direto, e de certa forma desacertado no tom em relação ao todo, em que se sai claramente do tom rarefeito para enunciar diretamente: na balsa, quando perguntado sobre para onde ele quer ir, o personagem, impassível, não consegue responder; e quando a esposa morta aparece certa noite para ele e diz algo como “Você sabe que, quando a gente se desloca, o que a gente deixou sempre vem atrás da gente”.

Se esses dois momentos parecem descolados – ou pelo menos um ruído dentro de um filme que recusa o sentido direto da trajetória que retrata –, eles apontam o quanto O Sol nos Meus Olhos é devedor de sua geração. A rarefação dramática é moeda forte no cinema contemporâneo. Porém, algumas vezes é preciso, necessário ou urgente enunciar. O deslocamento, a encruzilhada, a rarefação extrema, a melancolia, o esvaziamento – todos esses dados de O Sol nos Meus Olhos respondem a uma tendência pelo prazer do perder-se, da inconstância, da imprecisão que colocam as escolhas do filme em paralelo com longas-metragens exibidos no circuito de festivais nos últimos cinco ou seis anos – algo sensível também em As Horas Vulgares e Lacuna. Se o filme alcança belos momentos únicos em sua parte final – a identificação do protagonista com uma égua, a amizade com seu dono, a seqüência em que nada no riacho – eles se devem exatamente ao que escapa do diálogo com essas tendências de geração e apostam na expressividade do corpo do ator, na necessidade de dar uma trajetória ao personagem. É aí que O Sol nos Meus Olhos deixa o prazer da encruzilhada dele (pelo qual se rende no final) para dar sentido à viagem desse homem para além das tendências de geração.

Janeiro de 2013

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