O Som ao Redor, de Kleber Mendonça
Filho (Brasil, 2012)
por Luiz Soares Júnior
... e o mundo esquecido em mim
“Sinto-me às vezes
como uma pessoa que deambula pela noite e que acredita em fantasmas;
cada canto é-lhe conhecido de há muito, e medonho”.
Maximilian Klinger, “Sturm und Drang”.
`Wretch,' I cried, `thy God hath lent thee - by these angels he
has sent thee
Respite - respite and nepenthe from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe, and forget this lost Lenore!'
Quoth the raven: `Nevermore.'
Edgar Allan Poe, “The Raven”
“O maravilhoso corresponde a um fenômeno inédito,
algo que nunca vimos ou experienciamos, ou algo por vir; (...)
no unheimlich (Estranha inquietude), pelo contrário,
referimos o estranho ou o inexplicável a uma experiência
anterior, a um passado. Como no caso do fantástico, a ambigüidade
que o caracteriza só pode ser determinada na observação
do presente”.
Tzvetan Todorov, “Introdução à literatura
fantástica”.
Daniel Arasse, historiador do maneirismo,
escreve que uma das chaves para se compreender a Renascença
reside na passagem da “memória à retórica”;
na arte medieval, os tableaux continham uma verdadeira
rota figurativa do que um discurso deveria conter, uma prédica
exortar a, um devoto crer. Na falta de papel e de tinta, os quadros
viravam repositórios do sentido em todas as suas ramificações
e incrustações “significantes”. Mas
o status privilegiado da Memória para os antigos só
se deixa apreender de forma tópica e secundária
na figuração artística; a Memória
era a baliza de um Mundo, a pedra de toque de uma cultura: Mnemosyne
era a mãe das nove musas criadas por Zeus na Grécia,
a Musa sem a qual nenhuma outra inspiração seria
possível; na anamneses joanina, a Memória desempenha
um papel crucial na “economia da redenção”:
Bebei deste vinho e comei deste pão em minha memória;
para Isaac Louria, rabino cabalista do século 16, Deus,
que até então permanecera “contraído
em sua própria Infinitude”, ao criar o Mundo se descontraíra
- mas como Deus é o Nada, se permanecesse no mundo, nada
mais seria; então, ele voltou a se contrair sobre si, e
permaneceu presente apenas através da leitura e releitura
(infinitas) da Torá; na palavra, Deus é rememorado
e eternizado como Signo. E o que seria a mumificação,
comum não só aos egípcios como a várias
outras culturas, senão uma espécie de encarnação
da Memória num despojo de presença?
Em sua abertura, O Som ao Redor parece “lembrar-nos”,
por sua vez, deste caráter primevo (e último) da
Memória como a única forma de Eternidade que nos
coube: sermos votados a, destinados a ser rememorados por (para)
um Outro e, nesta ronda de congraçamento “horizontal”,
sermos ainda aí – por cinco minutos, ou
trezentos anos, que seja. A série de fotografias maceradas
pelo tempo parece estatuir, com uma contundência de “carimbo
de ser”, uma unidade e integridade ontológicas que
o filme vai se encarregar de perverter e dispersar. Em sua estrutura
episódica, suas núpcias entre o feérico e
o demoníaco, a crônica-sitcom e o filme de horror
“em surdina” –, a reconstituição
daquele mundo clássico “nosso e único”,
garantido pela Memória e encenado no Ritual, parece impossível.
Ao
campo e contracampo que fazem “cor-responder” no cinema
clássico dois seres que desde sempre habitaram um mesmo
bastião de presença, substitui-se um mundo rasteiro
e daninho, que só pode manifestar as relações
dos homens entre si e do mundo entre os homens através
do link sub-reptício do faux-raccord, da
variação de escalas (o entregador de água),
dos pontos de vista em diagonal ou “esgueirados”.
Um mundo onde o central e o frontal da estética clássica
– da câmera à altura do homem de que fala Hawks
– volta, e amplificado por um scope “Panorama
de atrações”: aqui, o rancor nosso de cada
dia adquire um caráter bigger than life que inspira
pânico agorofóbico.
Mas esta frontalidade expositiva, como na frontalidade asséptica
e psicótica de Chantal Akerman, é pervertida em
planos e trajetórias “de detalhe” que nos advertem
que a transparência e centralidade clássicas só
podem voltar assombradas, Outras.. O
filme é construído com todos aqueles detalhes que
“não deveríamos ver” na vida real, que
não fomos feitos – por nossa altura, compleição
física e psicológica, mas sobretudo por nossa integração
às normas e aos desvarios que “o sono da Razão
produz” – para ver. Há um canivete casual que
arranha o carro, há uma mulher que masturba uma máquina
de lavar e centrifuga a maconha pelo cano do aspirador de pó;
há
um vulto que, num contracampo fantasmagórico, tinge uma
foda com a iminência do sangue por-vir; há um homem
que reencontra no cinema presente e fantasma o eco de um público
morto –e no entanto mais alacremente Te Deum que o de qualquer
multiplex. Há uma diversidade considerável –
às vezes auspiciosa, às vezes complacente com a
própria exuberância – de pontos de vista infinitesimais,
pelos quais a gente passa sem prestar atenção (ou
passam eles por nós, sob nós?). É feito de
mil detalhes improváveis e indecomponíveis “a
olho nu e humano”; mas que o olho de um cachorro, voyeur,
criança ou psicótico podem chegar a vislumbrar.
Ou uma câmera... a câmera, esta máquina fenomenológica
terrorista, que se enfia e se incrusta onde não deveria
ir, e insiste em mostrar...
Mas de onde vem estas pequenas fantasmagorias que se infiltram
num dia claro e barulhento de sol – estes rastros e rasantes
“quase nada”, que num crescendo desaguam
no sonho da criança assombrada? Hitchcock declarou a Truffaut
ter tentado realizar com Trouble With Harry um velho
sonho seu: filmar o macabro num dia de sol. De alguma forma, este
sonho reiterou-se e dispersou-se por toda a obra de Hitchcock,
centrada, como nos mostra Bonitzer, na imbricação
entre o anódino e o extraordinário, o estranhamente
ordinário e o ordinariamente estranho; em suma, na manifestação
do que Freud, relendo Schelling, chamou de Unheimlich
(Estranha inquietude), insight que lhe acometeu a primeira
vez quando de um perturbador passeio, a esmo e numa tarde de verão,
por uma rua em Bolonha - que bem poderia ter sido o lugar onde
O Som ao Redor se passa:
"Encontrei-me num bairro sobre cuja natureza eu não
podia ficar em dúvida por muito tempo. Nas janelas das
pequenas casas, eu via apenas mulheres maquiadas, e apressei o
passo para afastar-se daquela rua estreita na próxima esquina.
Depois de andar por algum tempo sem pedir instruções,
de repente vi-me de volta à mesma viela, onde minha presença
já começava a chamar a atenção. Apressei
o passo novamente somente para descobrir, depois de tomar outro
rumo, que estava desembocando no mesmo lugar pela terceira vez.
Neste instante, fui invadido por um sentimento que posso apenas
denominar por unheimlich, e tive um profundo alívio
quando me vi de volta à pequena piazza onde havia
passado um pouco antes, sem me aventurar em outros passeios de
descoberta”.
Acrescente-se à paranóia descrita neste trecho os
travellings circulares de um inocente cristão transformado
na presa de um demoníaco Acaso e terás O Homem
Errado (Hitchcock, 1957); intercale o interdito que aqui
se insinua (sim, a rua narrada por Freud era a Zona da cidade)
com elipses fulgurantes e uma montagem em stacatto e
veremos o filme de que estamos falando. O Das unheimliche
consiste na reemergência de alguma experiência ou
evento que foi recalcado e que, num momento de crise ou “imunodeficiência”
da consciência (como nas pequenas e várias crises
que O Som ao Redor descreve), volta à tona, corroendo
com seu rastro envenenado as coisas e os casos mais anódinos
com um germe de malaise. Um Segredo que deveria permanecer
sepultoinsiste e resiste em estar-aí, assombrando
a tudo. O necessário a se reter é a conjugação
, presente na etimologia alemã do verbo, entre o familiar
e o estranho, “o familiar como estranho e vice-versa”.
Reconhecemos o que ali se mostra (é-nos familiar), mas
ao mesmo tempo este se apresenta de forma estranha, deslocada,
porque foi recalcado – não podemos admitir que nos
pertence. Não podemos ver.
O
que se verifica aqui é uma espécie de dialética
entre o interdito (à consciência) e o visível:
tudo o que foi represado ou esquecido tem de voltar (que o digam
as torres do World Trade Center, que o diga todo o cinema de horror,
sobretudo os filmes secretos de horror: Jeanne Dielman,
Nathalie Granger, Dilinger Está Morto,
O Espírito da Colméia). Mas volta Outro,
mascarado de nada...O fantasma é uma figura do
ressentimento; ele exige que a sua dor seja expiada, sua morte
vingada, e que o espaço-tempo da vida se deixe represar
naquele presente maldito que o exilou do ser. Como no Estrangulador
de Paul Vecchiali, a infância é o pólo do
Recalcado, o abrigo do Fantasma. Daí a alternância
no filme entre o espectral e o lúdico, conluio perverso
onde Fulci sai para tomar um trago com Victor Erice.
...A infância vilipendiada que exige Reparação
(os dois vigilantes), a infância expropriada que se entrega
à contemplação (a melancólica namorada
de João, cuja casa será demolida para dar lugar
a um prédio). No filme de Vecchiali, a “cena originária”,
repetida durante todo o filme, de uma criança que assiste
a um estrangulamento com foulard rosa, leva o menino
a querer repetir aquele que lhe pareceu um gesto de cariciosa
piedade: a assassinada beija a mão do estrangulador...
Ao longo da vida, ele matará a todas as mulheres que lhe
parecerem melancólicas e solitárias, que necessitarem
“ser aliviadas” do fardo do ser...
Ao contrário do Estrangulador, no entanto, é
impossível ao filme reencontrar qualquer cena originária,
pois o fantasma de O Som ao Redor não é
apenas “privado, meu”; se pertencer a algum pronome,
é ao que designa a todos nós: é a um fantasma
da Cidade – da Memória e da Identidade do Recife,
sepultas sob a barbárie middle class patrocinada
pela Moura Dubeux, que o filme se refere. A ênfase “sismográfica”
no espaço e no gesto como índice de memorabilia
– todas estas deliciosamente tenebrosas notações,
concentradas em Bia, sobre a arte de ocupar ou ser des-ocupada
pelo próprio espaço – mostram que o que se
encena aqui é a arqueologia não somente de um passado
individual represado, mas também coletivo; meu, nosso.
Se o filme é cercado de som por todos os lados, é
porque este é um meio “de cultura” particularmente
fecundo (é presente e ausente ao mesmo tempo; é
ubíquo no tempo) em permitir esta vinculação
“fantasmagórica” entre o passado soterrado
e o presente narrado.
Numa festa perto do final, João fala para o primo do namoro
recém-acabado: “Ah, ela partiu para outras histórias,
tinha outras histórias antigas” (cito de cabeça).
Esta “história antiga, esta outra história”
é a nossa história, mas enterrada sob o
concreto armado, retroescavadeira, metal. Como no monumento ao
Recalque chamado Jeanne Dielman, o monstro é clean
e smooth: espreita sob o cristal (como cristal). A assepsia
é indício de psicose (horror à Natureza,
à finitude, ao sertão “selvagem”, ao
Outro) ...O
último encontro dos namorados é (como na fazenda)
mais uma inspeção geológica de um espaço
de Memória – aqui, a antiga casa da moça,
que será demolida. Na fazenda, a infância de João.
Vasculha-se, ronda-se em “busca de mim”. Mas onde
estarei? Os travellings álacres (de descoberta
ou violação de mundo) que perseguem as crianças,
ou os dianteiros por onde se abrem as janelas, as andanças
de cá para lá: à la recherche du temps
exclu...é preciso reconstituir pé ante pé,
passo a passo um caminho que se extraviou, um espaço
que foi desapropriado, uma experiência que se esqueceu...
Como o jovem casal do Leopardo, este aqui se busca e se inventa
retrilhando os aposentos do passado familiar; mas em busca de
que mesmo??... Pensemos também nos monstros ambulantes
(em ponto de vista subjetivo) de Dario Argento: estão “à
cata” do fantasma que os criou, do “trauma”.
Como maneiristas, precisam desfigurar o corpo adorado (imprimir-lhe
uma anamorfose) para ao fim nele reconhecer a imagem
da mãe esquecida...
Há
ressalvas: uma certa precipitação nos tempos da
montagem, sobretudo na primeira parte; a transparência e
o andante necessários a uma intensificação
da experiência do unheimlich como infiltração
não são suficientes; o filme parece correr em busca
de suas cenas-chaves (originárias), estar ansioso por esta
volta ao capacho paterno: a Fazenda, a Reconciliação
(?) demoníaca do final. Urge esperar...Certa vulgaridade
“de vinheta” surge disto, uma precipitação
em gravar em água-forte certas forças em suspensão
ou sono, de “apontar o dedo para” antes que os personagens
tenham tempo de “desvestir” a face de monstros: o
pitoresco exacerbado do confronto com o primo, o encontro com
a máquina de lavar... Em Nocturno 29, Pere Portabella
filma algo semelhante: Lucia Bosé masturba um motor. Dura
cinco minutos, e queremos mais: não é fácil
fazer gozar um motor...
Ao final, as duas pontas da vida e da morte, do Fim e da Origem
voltam a se abrigar sob a infância: o tiro justiceiro é
substituído pelo fogo de artifício; o feérico
faz as pazes com o monstruoso, o Fatum com a Epifania, o fora
de campo (Memória, Imaginário) enfim viola o campo
e nele se instala, senhorial; e seguem...mas até quando?
e para onde?...
Outubro de 2012
editoria@revistacinetica.com.br
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