ensaios
Mal do século
Ossos e a morte de um cinema
por Juliano Gomes

Ossos é o filme da crise de Pedro Costa com o cinema, com uma forma de fazer cinema. Uma espécie de obra de luto em relação ao modo de produção clássico: 35mm, iluminação pesada, assistentes, tudo isso morre aqui. O filme é uma espécie de marcha fúnebre, de desfile da morte na tela. Marcha, porque é, acima de tudo, um filme musical, mais audível que visível. Morte, pois nele quase tudo é noite e doença - o que se prenunciava em Casa de Lava, esse mal estar, essa enfermidade sem nome, se espalhou, e esse alastramento é o que Ossos mostra.

OssosDepois dos líquidos "sangue" e "lava", este longa seguinte tem em sua matéria principal uma mistura de sólido e gasoso. É pelo ar que esse mal se propaga, assim como o som (estamos próximos aqui de Morte em Veneza, Meu Deus, Meu Deus, Por Que me Abandonastes? e Fim dos Tempos). E que doença é essa? Ossos é uma espécie de melodrama doente, débil, que já quase não consegue progredir, é um estado, mais que uma narrativa. Não é um filme que progride (no seu único grande movimento, um longo travelling no início do filme, trata-se mais de uma circulação, de andar em círculo). Seu roteiro é agonizante, suas ligações são fracas, quase inexistentes: há um bebê, um pai, uma mãe, uma vizinha, uma enfermeira e uma puta (?). Há, somente. O bebê circula de mão em mão (talvez até no saco de lixo, durante o mencionado travelling), como uma espécie de figura que não pertence àquele universo de seres que parecem, ao longo do filme, cada vez mais se igualar.

As identidades, se é possível falar em alguma aqui, começam a se diluir, os personagens a se confundir, homem, mulher, português, imigrante. Isto que se propaga pelo ar, em Ossos, espalha esta igualdade originária, pós ou pré. Não se sabe se trata do céu ou do inferno, do mundo da mitologia grega ou do pós-apocalipse. A atualidade do filme é justamente estabelecer esta ponte, este desvio do tempo, que instaura uma temporalidade da suspensão, vertical, onde estão instalados esses estados, essas atmosferas, essas bolhas de ar. Talvez um terço do filme seja composto de screen tests warholianos. Planos de tempo passando, planos que documentam o tal "trabalho da morte sobre os corpos", e é esse gás que está a se espalhar. A única evidência de sua trajetória é o som. Um ruído qualquer é formado por uma onda que é presença e ausência, daí seu formato de onda. É essa oscilação que produz o som que percebemos. O que Costa nos mostra aqui são seres que habitam essa oscilação, esse lusco-fusco. Ossos, ainda mais que seus outros filmes, é uma antecâmara da morte.

Casa de LavaPorém, a partir do momento em que o tempo está suspenso, em que cessa de progredir e passa a se acumular, a se suspender, adicionando camadas, então nada mais consegue morrer. Daí o desespero, o desejo pela morte, presente no filme. O que se precisa conquistar aqui é uma espécie de direito de morrer, de causar a própria morte, de ser dono dela, de ser seu agente - não por acaso temos inúmeras tentativas de suicidio no filme e a presença de uma canção punk, "Lowdown", do Wire, que representa o momento em que a arte "aprende a morrer". É talvez essa uma das principais "tomadas de poder" (e daí sua possível ligação com cinema dito moderno) dos filmes de Pedro Costa: a possibilidade de morrer, de agir sobre si mesmo fatalmente, de fazer-se imagem apesar de tudo, de causar a própria morte, pois essa parece a única possibilidade de vida para aqueles personagens de quem já se tomou tudo. É preciso começar um outro jogo, um outro tempo, uma outra marcha, intoxicar o real, sabotar a narrativa e instaurar um estado que "dobre" o controle (no sentido deleuziano, de um tipo de sociedade que sucede as disciplinares, e que funciona de maneira gasosa).

Os zumbis de Fontainhas passam grande parte do filme olhando para cá, para nossa esquerda. Seu olhar quase tem pena. Parece saber que a doença já se espalhou. Já é tarde demais (novamente próximo dos modernos, de Visconti, que também nos oferece "visitas guiadas" a estes espaços igualmente barrocos que rumam para sua destruição), o gás se espalhou. A sua expressão e sua maneira como ficam de pé diante de nós, insistentemente, insolentemente, como que prenuncia a nossa desgraça. São uma espécie de Tirésias que só pode calar-se diante de nós, espectadores, diante do cinema, esse engodo que teima em se afastar da vida. Ossos é essa vingança, um filme-falência de um cinema socialmente engajado, de um cinema realista, da ficção e do documentário, do cinema de arte. Essas figuras indistintas olham o tempo todo pra nós (estamos abaixo delas), nos recusando, constatando que o cinema não tem nada pra fazer aqui, é em vão nosso esforço. Trata-se de um filme eminentemente frustrante (e não frustrado, muito pelo contrário), pois sua questão é a recusa do acesso. Daí a ausência de profundidade nesses screen tests: são colocados muros (onde moram as sombras), anteparos diante de nós, e onde nem a morte consegue passar. No trespassing. A morte é chamada para dançar. Os ossos são o que ela mais demora a atingir, é o que fica, é o que é duro e sólido, é o que se dá aos cães. É o que resiste, o que teima em permanecer.

Casa de LavaNão há acesso porque não há mais dentro e fora. É uma natureza-morta o que está diante de nós. É esse tipo de indistinção que está em jogo (aqui a aproximação é com a modernidade de Cézanne). É uma matéria inútil, inerte, prestes a apodrecer, que se coloca diante de nós e nos desafia a contemplá-la. Só que as maçãs passaram a olhar para nós. Ossos é um filme a nos assistir, quase a zombar de nós. Somos quem precisa de ajuda. Esse mal estar é com o próprio cinema, é um enjôo com sua própria forma de ser. Ossos é mesmo um pesadelo. Um labirinto povoado por mutantes, seres que se transmutam uns nos outros, mas que não parecem ser nunca nós mesmos (a identificação é também objeto de recusa aqui), são qualquer coisa outra a nos contemplar. É talvez um longo contra-plano. O filme, que ouvimos, está do outro lado, é a ele que os zumbis de Costa assistem, impassíveis. É o filme da nossa angústia diante desta obra, da nossa procura de nexo, da procura de um registro ou de qualquer pista que nos forneça um caminho ou um sentido para trilhar. É uma viela escura, sem passado ou futuro, que leva do nada ao lugar nenhum. Este é o seu espaço. Este é o cinema e sua absoluta inutilidade, sua passividade radical, essa doença esquisita que cria seres que habitam ambientes escuros e que olham fixamente para um ponto específico, imobilizados. E o que nos diferencia daqueles que estão na tela é que eles parecem já saber disso.

Dezembro de 2010

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