in loco - cobertura do 45o festival de brasília
Otto, de Cao Guimarães
por Fábio Andrade
Beleza redundante
Há um incômodo inevitável que se desdobra
em camadas diferentes diante de um filme tão escancarado
como esse Otto, de Cao Guimarães. Se, por um lado,
a entrega da vida privada é admirável pelo despudor,
por outro, ela não consegue deixar de ser a exposição
de algo que, por si, deveria ser mantido privado - o que coloca
o crítico na delicada posição de falar da
vida alheia. É difícil escrever de Otto
sem esquecer que estamos falando da mulher e do filho do diretor,
mas a partir do momento em que eles são transformados em
personagens, e que a vida virou tema, é necessário
tentar esquecer esse dado do mundo concreto e engolir a tarefa
ingrata que nos foi jogada entre as patas para tentarmos encontrar
alguma chave de aproximação possível que
não simule, entre espectador e obra, uma intimidade na
verdade inexistente.
Vários artistas se entregaram a semelhante despudor do
privado; pouquíssimos conseguiram construir algo de realmente
universal no processo. Nenhum deles conseguiu chegar lá
sem abrir mão de todo e qualquer instinto de preservação,
entregues à disposição de matar a própria
família por uma obra de arte. Cao Guimarães tem
um olhar de apuro raro no cinema brasileiro. Em Otto,
essa consciência fica clara na composição
das imagens, se espalhando para um uso particularmente interessante
de cores esmaecidas que domina seus filmes mais recentes. Não
se trata exatamente de um objeto desagradável de se olhar.
Enquanto vários diretores batem cabeça com as tais
imagens sem foco das câmeras HDSLR, foi ele quem melhor
encontrou nessa limitação uma possibilidade expressiva
de criação e modelagem da matéria, em que
o desfoque isola os objetos no mundo com a mesma intenção
(mas incomparável expressividade) de revelar o “em-si”
das coisas, em um afastamento consciente da Idéia (no sentido
platônico do termo) que fez muito da arte contemporânea
adotar os fundos neutros, a ausência de perspectiva, a frontalidade
e os enquadramentos protocolares à Bernd e Hilla Becher.
A diferença é que, ao contrário do que pouco
interessa (mas custa caríssimo) no trabalho dos Becher,
para Cao Guimarães essa neutralidade fria é ainda
uma forma de buscar o belo, frequentemente encontrado no ruído
entre procedimento e intenção incompatíveis.
Em filmes como A Alma do Osso e Andarilho, o
diretor produzia força muito por essa propensão
à beleza esbarrar em uma frieza metodológica quase
científica, capaz de transformar todo corpo em linhas geométricas,
todo rosto em topografia e toda relação em estrutura.
Eram filmes erguidos em certa austeridade que, quando friccionada
à beleza, produzia fagulhas de surpresa. Mas, neste encontro
descomplicado com a beleza, se esconde uma latente facilidade.
Em Ex-Isto, o limite do cinema de Cao Guimarães
se impunha na imagem-conceito repetida em loop e na sensação
de que sua inclinação pela beleza se anulava na
busca do humano, de uma sensibilidade por demais viva, carnal
e misteriosamente redundante. Era um filme que carregava uma concentração
tão alta de “belo”, de sensível, de
expressivo que ele não conseguia se mover, sucumbido sob
o peso do encanto com sua própria intensidade.
Otto, um filme radicalmente diferente de Ex-Isto,
acaba produzindo sensação parecida. Mas se lá
era o excesso de carga emocional que impedia o trem de começar
a viagem, aqui a dificuldade está em transpor esta capa
de doçura que cobre todas as imagens, este agenciamento
pastoso de sensibilidades (texto-estrutura-imagens) que faz todas
as unidades redundarem na mesma direção, virando
os vagões e empesteando de açúcar quem observava
o trem enquanto esperava para atravessar a ferrovia. Talvez o
amor romântico não consiga (ou deva) se desvencilhar
desse torpor edulcorado que enxerga beleza em cada pequena manifestação
diária do objeto de desejo (e, talvez, justamente por isso
ele seja da esfera do privado)... mas a representação
do Amor – ou seja, a arte – não tem nada de
cotidiana, e esse excesso de peso, esse peso sem qualquer gravidade,
padece de uma falta de estrutura que condena o mundo a existir
sem matéria.
A sequência de dois longas seguidos que sofrem de versões
diferentes do mesmo mal poderia ser uma notícia desanimadora,
não tivesse Cao Guimarães realizado, neste amontoado
de tempo, uma pequena obra-prima de curta duração
chamada Limbo – filme que potencializa o embate
entre uma rígida estrutura e a beleza unitária dos
planos, chegando a limites narrativos inéditos na carreira
do diretor. Otto não tem o mesmo rigor. Em dado
momento, a voz do diretor toma a banda sonora e diz que as imagens
do filme eram impregnadas pela idéia de geração,
de gênese, de fecundação que culmina no nascimento
do bebê que dá título ao filme. Mas o isolamento
deste afeto na beleza, o desejo de protegê-lo da violência
que nutre tudo o que é vivo, o previne dos encontros que
têm justamente o potencial de gerar, do radical "generare"
de um “Genius que é a nossa vida, enquanto
não nos pertence” (Agamben). Em Otto,
a intimidade redundante da beleza é ironicamente estéril.
Setembro de 2012
editoria@revistacinetica.com.br
|