in loco - cobertura dos festivais
Outrage Beyond (Autoreiji: Biyond),
de Takeshi Kitano
(Japão, 2012)
por Filipe Furtado

A comédia moral

O primeiro Outrage que Takeshi Kitano nos apresentara dois anos atrás era uma intencional provocação ao espectador, retomando o universo e situações que o cineasta renegara nos seus outros filmes da década anterior (para desagrado de muitos dos fãs que conquistara no ocidente, assim como distribuidores e programadores de festivais), mas removendo deles todos os elementos “cinema de arte” que ajudaram a popularizar filmes como Sonatine ou Hana-bi. Outrage reduziu seu universo de gangsters à mais pura grosseria – uma série de golpes, traições e assassinatos cada vez mais criativos que por vezes aproximavam o filme de um horror slasher. Esta sequência (o primeiro filme, apesar de um fracasso no ocidente, foi bastante popular no Japão, como o logo da Warner na abertura reforça) tem uma tocada bem mais tradicional, de certa forma se aproximando muito do duo Eleição do Johnnie To, nos lembrando de que, se há uma garantia na carreira de Takeshi Kitano, especialmente após Hana-bi, é de que ele jamais nos entregará o filme que esperamos. Num universo em que o cinema de festivais se vê cada vez mais preso a autores encerrados em si mesmos, pode-se sempre confiar em Kitano para bagunçar as coisas. É esta mesma inquietude que já nos impressionava desde os tempos de Boiling Point que segue a maior característica do cinema do diretor e que o torna ainda mais essencial em meio a tantos autores consagrados institucionalizados. E se, a principio, Outrage Beyond é o seu filme mais acessível em cerca de uma década, este é somente mais um dos muitos desvios pelos quais Takeshi Kitano se lancará nesta sua nova aventura.

Se Outrage Beyond lembra um filme anterior do diretor, é Brother, que ele filmara nos Estados Unidos doze anos atrás. Mas se Brother se notabilizava justamente por ser um olhar muito amargo de um estrangeiro sobre aquele país, seu novo trabalho evidentemente se passa no Japão atual. A maior similaridade com os filmes de To vem justamente da frontalidade com que Kitano iguala o gangsterismo e o grande capital, não como alegoria, mas só como um dado a mais. Apesar de cenas iniciais em que alguns chefes veteranos reclamam da perda de poder diante de um chefe só interessado em lucros, Outrage Beyond trata seu universo como só mais negócios de sempre. O ciclo de violência que ele apresenta em nada difere da ação de cinco anos atrás, já que o olhar de Kitano evita a armadilha fácil de sentimentalizar o passado com uma nobreza que nunca existiu.

A outra similaridade com Eleição e sua sequencia é justamente a maneira como o Kitano se utiliza do filme anterior para adicionar textura ao mundo do seu novo filme. A primeira meia hora de Outrage Beyond é quase incompreensível, em meio aos diferentes grupos de Yakuza, múltiplas agendas, e nomes e eventos que são mencionados como dados concretos da vivência de cada um dos seus personagens. Mas com o passar do tempo este amplo universo de referências se soma para construir um retrato de um meio em que todos (Yakuzas, policiais e gangsters aposentados) repartem do mesmo passado comum que o espectador já vira, do qual o filme anterior também é parte. É um processo que aos poucos estabelece Outrage Beyond como uma experiência ainda mais rica e que promove uma força e inevitabilidade ainda maior para muitas das suas ações posteriores.

Se Outrage era um slasher com Yakuzas, Outrage Beyond muito rapidamente se revela uma comédia de maneiras de gangsters que ao mesmo tempo celebra o código que supostamente os rege e faz troça de todos os rituais e traições que os dominam. Expulsos da Yakuza por serem os bodes expiatórios do conflito anterior, Otomo (o personagem do próprio Kitano) e Kimura (seu maior rival do filme anterior, que traz no seu rosto as cicatrizes que o antigo inimigo lhe deixara) criam uma aliança que muito rapidamente se transforma numa destas relações de irmandade que tanto fascinam o cineasta, já que, se Kitano vê pouco mérito na nostalgia por tempos passados, ele certamente conserva grande interesse pela ideia do código moral do gangster. Assim como Brother, Outrage Beyond se move para o terreno da história de amizade entre gangsters em meio ao caos de um universo que progressivamente vê menos valor na moral que os rege; se no filme anterior a graça e o estranhamento existiam em deslocar tal código para os EUA, aqui Kitano sugere que o código todo é uma piada, que somente tolos como Otomo e Kimura levam a sério. É uma piada recorrente de que é óbvio que o atual chefe da família matou o anterior, mas todos fingem choque com a noticia e estão mais preocupados em conservar as aparências da sucessão – afinal, não foi a primeira, nem a última vez que tais coisas se resolveram de forma violenta.

Quanto mais sangrento Outrage Beyond se torna, mais absurdo ele se revela. A mais recorrente das soluções cômicas de Kitano é entrecortar uma sequência violenta com a reação apalermada de todos à sua volta, mais do que acostumados  pelas milhares de execuções que presenciaram antes. É um mundo de homens (só duas cenas contam com atrizes) que vivem e morrem de forma estúpida e de certa forma são todos muito conscientes disso. Outrage Beyond não filma suas mortes com a mesma inventividade de Outrage (cuja criatividade e disposição eram dignos de Mario Bava). Preferindo ressaltar o absurdo da sua inevitabilidade e tédio, o filme estende uma idéia sugerida pelo anterior: a de que estamos acompanhando um filme de fantasmas em ação, seguindo sua lógica até o auto-exterminio, para sua conclusão inevitável de tornar suas imagens o registro de uma série de figuras autômatas a matar e morrer porque é somente isso que elas são capazes de fazer. No meio do enfado cômico da violência de Outrage Beyond, uma sequência de execução se destaca como seu grande momento: sem entrar em detalhes, ela envolve um campo de beisebol, e muito do que há de memorável nela brota da maneira que Kitano pacientemente introduz seus elementos, e indica que vai eventualmente usá-los – e quando finalmente o faz, estende a cena bem além do “necessário”, seu plano extra bem explicito reforçando a inevitabilidade absurda de toda violência do filme.

Muito do humor sutil surge justamente da percepção de Otomo sobre ser uma figura ultrapassada e da maneira como ele e Kimura se comprometem em levar até as últimas consequências sua vingança. Otomo em particular mantém a mesma impressão de ultraje enquanto a variada galeria de figuras corruptas dos dois lados da lei desfila diante dela. Se o Kitano diretor sempre foi muito hábil em fazer uso do rosto semiexpressivo do Takeshi ator, a forma como este rosto ao mesmo tempo expressa irritação e calma por tudo à sua volta poucas vezes foi colocada para tão bom (e frequentemente muito engraçado) efeito. No meio do caos, a crença de Otomo na idéia de irmandade é seu único chamado à ordem. Faz sentido que o real antagonista do filme não seja nenhum dos outros gangsters, mas o policial corrupto e instigador, sempre às margens da trama, pronto para jogar um grupo contra o outro em beneficio próprio e, principalmente, dar a mesma risada cínica de quem sabe que toda esta ação não significa nada. Mas para Otomo – e para Kitano – ela significa muito. Afinal, por mais caótico que o mundo de Outrage Beyond seja, Kitano tem o direito de crer que até mesmo Yakuzas precisam manter as maneiras certas.

Outubro de 2012

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