ensaios
Cinco METAs
Ovos de Dinossauro na Sala de Estar, de Rafael Urban
por Raul Arthuso

- META-ARQUEOLOGIA: Em Ovos de Dinossauro na Sala de Estar, Ragnhild Borgomanero oferece à câmera uma visita a seu arquivo particular, cujo personagem principal é seu marido Guido. Passa-se por recortes de jornal, cartas, fotografias, slides, filmes, até chegar o momento em que ela apresenta uma coleção de ovos de dinossauro. A imagem simbólica não poderia ser mais generosa. O filme se estrutura no desbravamento dessa memória fossilizada nos diversos materiais, tentando revelar o tesouro por baixo das camadas depositadas pelo tempo.  O gesto mais forte do filme está em não tentar descobrir uma suposta verdade, mas revelar a narrativa escondida na casa de Ragnhild - que possui não apenas os registros e a memória, mas o próprio tempo dessa história. Ovos... não é um documentário, mas uma arqueologia da memória, na medida em que busca transmitir um conhecimento fragmentário desfragmentando-o, sem com isso tentar enquadrá-lo, e sim deixando que a lacuna que separa o realizador de seu objeto - a memória de Ragnhild - fale por si só.

- META-ROMANCE: Quem preenche esse espaço no objeto é Guido, o personagem-memória, essência ausente do amor narrado por Ragnhild. Vamos imaginar uma reinvenção de Shakespeare: Romeu e Julieta fazem seu pacto de amor eterno e, em vez de articularem uma forma - trágica - de sobreviver à força conservadora e mesquinha de suas famílias, resolvem pular umas etapas e fugir direto para um paraíso nos trópicos. Esse amor, se perde em potência trágica, ganha em afeto - em fato, o verdadeiro tema implícito nas falas de Ragnhild, mesmo depois de tanto tempo. A diferença entre Guido/Ragnild e Romeu/Julieta é essa pequena fagulha trágica que, por outro lado, faz do amour fou shakespeariano uma decantação de onde resta esse afeto, traduzido pela memória. O que Ovos... registra, então, é uma existência/resistência, como se ao amor perfeito, mesmo com seus conflitos (como a própria personagem frisa em determinado momento), Ragnhild dissesse “sim, é possível”. Ovos... é também uma história de amor.

- META-AUTORIA: A última camada, então, é a que sempre esteve à vista: Ragnhild. Pois, os materiais, a memória e mesmo Guido, são absolutos; já ela é mutante: não é pura representação, mas também o é; não é pura imagem, mas definitivamente é também; não é uma personagem construída, mas essencialmente o é. A alteridade, nesse contexto, não é uma generosidade, mas a única opção ao lidar com uma personagem maior do que o filme. Ragnhild é, sob este aspecto, a personagem mais intensa do cinema brasileiro desde o Capitão Nascimento de Tropa de Elite. Enquanto a personagem de Wagner Moura toma o filme à força, a “brutalidade” de Ragnhild com o filme é uma invasão bárbara: vai do centro para as bordas e conquista plenamente o império da imagem para si. Logo em sua primeira fala, contando como começou o romance com Guido, ela diz sobre o assassinato de Kennedy algo como “hoje pode parecer comum matar um presidente”; é o primeiro de uma série de comentários do qual rimos ao longo do filme. Rimos dela ou com ela? Resposta: os dois - rimos dela e com ela; mas apenas porque esse riso nos é permitido por ela. Ragnhild controla sua imagem, sua profundidade, sua dramaturgia, como se tudo existisse e para ela retornasse apenas quando a câmera está lá para que ela posso fazer isso existir. Ovos... é também um filme da (re)invenção do ser.

- META-ENCONTRO: Quero um dia encontrar Ragnhild pessoalmente. Duvido que seja tão formal, tão polida, duvido até mesmo que seja estrangeira e tenha aquele sotaque. Ovos... é a menor distância entre os dois pontos desse encontro impossível.

- META-FINAL: É raro um filme que sabe onde terminar: na fronteira do que é com o que poderia ser. O único documentário possível em Ovos... é o da justeza de si mesmo.

Maio de 2012

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