sessão cinética
Paisagem na
Neblina (Topio stin omichli),
de Theo Angelopoulos (Grécia/França/Itália, 1988)
por Fábio Andrade
Ao
mínimo
Theo Angelopoulos alcançou um breve período de quase unanimidade
cinéfila e crítica com este Paisagem na Neblina, lançado
no Brasil no começo da década de 1990. Filme de um rigor notável,
Paisagem na Neblina parecia ser o fecho definitivo e perfeito
de um ciclo de desencanto pós-Maio de 1968, que rendeu obras-primas
indiscutíveis (Profissão Repórter, de Antonioni), sintomas
de picaretagem (O Último Tango em Paris, de Bertolucci)
e grandes filmes que saíram de moda (Paris, Texas, de Wenders).
Em todos os casos, o choque com as utopias dizimadas criava personagens
condenados a uma errância que sequer se traduzia em busca, como
se o cinema “autoral” não tivesse mais para onde ir, uma vez que
a briga maiúscula havia sido perdida. O
cinema parecia condenado à sua própria latência.
É justamente por estar um pouco à margem desse centro nervoso
artístico (e é uma ironia do mundo moderno que a Grécia, de todas
as nações, pudesse ser considerada marginal para o pensamento
artístico em qualquer momento da história humana) que Angelopoulos
consegue, com impressionante inteireza, dar conta dessa mesma
distopia com quase duas décadas de atraso. A semelhança da trajetória
das personagens com esse estereótipo angustiado esconde, por sua
vez, uma motivação diferente: o desamparo órfão de Angelopoulos
não é exatamente com o projeto de mundo que morre em 1968, mas
sim com um cinema grego que talvez nunca tenha existido com real
expressividade no panorama mundial, e do qual Angelopoulos segue
como o maior nome. Não à toa, suas personagens
são crianças que, na busca pelo pai, encontram um fotograma de
cinema perdido, aparentemente em branco. Paisagem na Neblina
é um filme não só sobre o cinema, mas sobre o fotograma, o plano
– o átomo cinematográfico indivisível, ao qual não sobrevivem
os travellings, as panorâmicas, a câmera no ombro. Mesmo
o travelling mais longo é apenas uma sucessão de planos
estáticos, e são a essas duas coisas – o plano e a estaticidade
– que Angelopoulos endereça suas preocupações. Em época de reavaliação
premente de um diretor agitado, para o bem e para o mal, pelas
marés da moda e dos costumes, é só retornando ao plano, ao indivisível,
que podemos reapreender o valor de seu cinema.
De
todos os muitos planos extraordinários de Paisagem na Neblina,
escolho três. O primeiro, que pode ser reduzido a um único fotograma,
mostra os dois irmãos na estação de trem, logo após terem sido
retirados da composição pelo fiscal. As crianças aparecem no centro
exato do quadro; à sua direita, as pilastras destacam o policial
que impede que elas sigam viagem; e à esquerda, com uma simetria
asfixiante criada na proporção do 1:1.37, passa o trem. A posição
cuidadosa de cada elemento no quadro gera, nos irmãos, uma concentração
de forças atordoante: há a vontade de partir e a obrigação de
ficar; o passado, o presente e o futuro; mas a maneira como os
elementos são dispostos no quadro dá a impressão de que todas
as forças partem das crianças, ao mesmo tempo em que agem sobre
elas.
Os
outros dois planos são conectados por um elemento de cena que,
pelo posicionamento, a interação com as personagens e o tempo
de presença no quadro, materializa o pensamento de uma personagem
na associação entre os planos. No primeiro, um caminhoneiro que
deu carona aos irmãos leva a garota para a carroceria, escondendo-a
em um fora-de-quadro criado no centro do quadro. A ação que se
dá fora do alcance de nossos olhos dura poucos minutos – talvez
sequer tempo suficiente para que possa haver um estupro – mas
que trazem o peso da eternidade. A garota desce do caminhão e
o sangue escorre por suas pernas. É tudo que vemos: o antes e
o depois, e uma bolha de tempo cinematográfico que, mesmo sem
cortes, pode ou não corresponder ao tempo real.
Mais
tarde, na praia, os irmãos reencontrarão um motoqueiro que os
ajudara em um momento anterior do filme. Ao fundo, um trailer
evoca de imediato a imagem da carroceria do caminhão e o que supomos
ter acontecido dentro dela – talvez por Angelopoulos reservar,
ao trailer e ao homem, o mesmo espaço do quadro onde antes esteve
o caminhão. É como se o trauma permanecesse impresso naquela parte
do negativo até o final do filme, fazendo sombra sobre qualquer
elemento que ocupasse aquele mesmo lugar. O rapaz convida a menina
a dançar, que resiste ao convite. Ele a pega pela mão e, com uma
panorâmica, Angelopoulos vai lentamente tirando o trailer do quadro.
É como se a lembrança da violência anterior fosse, em um primeiro
momento, projetada pela menina no homem que conhecera em sequência,
e que também lhes dera carona. Aos poucos o rapaz ganha a sua
confiança, e o trauma associado do ato infilmável vai sendo deixado
para trás – tanto pela personagem, quanto pelo filme – até que
não exista mais trailer, e sobre apenas a areia e o mar.
A cada revisão de Paisagem na Neblina, é certo que outros
planos, tão ricos e marcantes quanto esses, nos surpreendam como
uma revelação. Esse velho cinema de procedimentos, onde a história
é sempre contada e escrita pela câmera e pela disposição dos objetos
no quadro, com o passar do tempo perdeu espaço e prestígio para
um cinema da fluidez absoluta. A reação da geração posterior fez
com que uma escritura tão marcada quanto a de Angelopoulos fosse
datada em vulgaridade. Retomando Paisagem na Neblina hoje,
em momento em que a banalização mina o cinema de fluxo em inanição,
o cuidado do cineasta com a construção de cada fotograma volta
com um vigor extraordinário. Em parte, isso se dá por os grandes
filmes serem organismos vivos, em contato constante com a história
que lhes é anterior e subssequente. Mas também porque Angelopoulos,
com seu domínio ímpar da mise en scéne e um talento notável para
contar histórias, realizou um filme onde cada novo plano sobrevive
como um enigma, e cada fotograma em branco é capaz de acobertar,
de fato, uma árvore. Basta se comprometer a enxergá-la.
Julho de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
|