Pan-Cinema
Permanente, de Carlos Nader (Brasil, 2008) por
Cléber Eduardo
 Tudo
é efeito “Vida é sonho”, repete Waly Salomão em Pan-Cinema
Permanente, de Carlos Nader, em consonância com outras de suas afirmações,
nas quais se coloca do lado da opacidade e não da transparência, da necessidade
da mentira para a sobrevivência e não necessariamente da verdade. Estamos no território
da performance, das potências do falso, das máscaras e de toda sorte de artifícios,
no solo de Nietszche, com aparência como marca distintiva e mediação da relação
com o(s) outro(s). Em dado momento, sabemos que o diretor,
ao registrar as reações de Waly Salomão à câmera em diversos cantos do mundo,
da Amazônia a Síria, deseja um momento relaxado, de distração de seu personagem,
um instante no qual ele não esteja com plena consciência da lente, no qual abandone
a encenação e, simplesmente, nos dê uma ausência de cena. Um momento sem máscaras,
ou com menos máscaras, busca Nader, atribuindo à sua máquina, portanto, a potência
do desvendamento e do desmascaramento. Nader quer uma câmera que, em relação a
Waly Salomão, dispa-o de seus artifícios cênicos. No entanto, em vez da câmera
despi-lo, Waly se constrói nela. E ela se constrói nele. Não se trata de um registro
“sobre”, nem “com”, mas em Waly Salomão. Nader nada revela de Waly Salomão, mas
Waly revela algo de Nader, porque, se como objeto o personagem se faz sujeito,
Waly ultrapassa esse efeito de inversão de poder entre os dois lados da câmera,
dirigindo a cena diante da câmera (especialmente na TV Síria), e revelando a capacidade
de quem está atrás dela (Nader), de se fundir ao ator e mestre de cena captado
pela lente. Nader
não conseguiu o instante de distração e relaxamento de seu performático objeto-sujeito,
nem mesmo quando o filma dormindo, na verdade um efeito de uma interpretação,
de um fingir dormir para a câmera, como o próprio diretor afirma em uma conversa
com Antonio Cícero. Waly Salomão é uma cena ambulante e permanente, um pan-cinema
constante, a personificação da vida pública, do teatro em praça, da imagem em
seu tempo histórico (o tempo histórico da imagem), sem dar chance para uma autenticidade
sem artifícios. Waly tem consciência do poder de uma câmera, das possibilidades
vampirescas e intrometidas do aparato, e sua performance é uma espécie de contra-ataque,
estratégia para usar a câmera em vez de ser usado por ela, consciência aguda do
jogo de poder entre quem está atrás do visor e diante da lente, jogo esse conduzido
por ele sempre com vitória e modelação do aparato a sua encenação.
Assumindo
a opacidade reivindicada por Waly, Nader já começa sua fragmentada narrativa com
um sinal de reflexividade, repetindo a entrada triunfal de Waly pela porta de
um apartamento, já mostrando tratar-se de uma cena combinada, e seguindo a performance
física e verbal do artista em um plano-sequência enunciador da proposta estética:
uma soma não-organizada de momentos de Waly, com variações de luz, texturas sensíveis
e de lindas conseqüências visuais (poéticas, na falta de termo menos vago), tendo
como material o pulsar transbordante da imagem do poeta baiano. Se
ouvimos lá algumas vozes celébres sobre Waly, sobre o estilo Waly, se essas vozes
às vezes ganham imagens, nos colocando o material em uma paralela de procedimentos
padrões do documentário “sobre” uma personalidade singular, Pan-Cinema Permanente,
sem deixar de nos colocar em algum lugar do mesmo caminho de I’m not There,
de Todd Haynes, diante de uma esfinge que tem controle de sua imagem, se sustenta
como exercício de sensibilidade. Se estamos diante do personagem/representação,
resta à obra tornar-se pura linguagem, não no sentido de soma de signos encadeados
para transmitir sentidos, mas no sentido de reunião de fragmentos audiovisuais
com os quais se constrói um mundo sensível, um universo poético e artístico, que
não toca o real, mas se serve da intervenção da câmera e da cena produzida no
real para, obra pronta, nos possibilitar estar em contato com instantes formalizados
por um aparato e a reação a ele. Alterar!
Esse é o verbo-chave de Waly, segundo ele próprio, e esse será o conceito-chave
de Nader. Altera-se a luz com leve movimento de câmera, altera-se do preto e branco
para cores discretas em seu balanço, altera-se uma ordenação do material, altera-se
o enquadramento de acordo com a direção do ator em cena (Waly). Alteração como
estado do homem de fronteiras, do artista fronteiriço, do cinema dos limites (nos
limites), que está sempre em busca do ainda não encontrado, mas muitas vezes tendo
de se construir com essa busca sem revelações, a não ser a revelação da busca.
Talvez pudéssemos pensar essa busca ao lado de outras não menos potentes, como
a de Paula Gaitan em Diário de Sintra ou a de David Perlov em seus Diários,
também obras nas quais a câmera está em busca de desnudamento, mas só nos tem
a ofertar imagens embebidas do olhar de quem as registra ou provoca. Portanto,
Pan-Cinema Permanente é sobre Carlos Nader, sobre sua exitosa busca sem
sucesso, sem alcançar um momento de não-performance de Waly.
Abril
de 2008
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